Lendo as recentes propostas legislativas europeias, o que mais chama a atenção é a clara e grotesca incapacidade da Comissão Europeia pensar para além de dar ordens e proibir ou, de qualquer forma, privar os cidadãos da sua liberdade. Para o seu próprio bem.

Mas isso não admira. A Comissão sempre teve a tendência para se intrometer na vida privada dos cidadãos. A novidade é que, agora, esta intromissão sem tréguas é apresentada como a realização absoluta da liberdade, e, portanto, questioná-la significa atacar a liberdade, recuar para experiências, ideologias e regimes do passado. Logo, impõe-se saber se já alguém viu uma liberdade concebida como um modelo de sentido único, como uma liberdade que sufoca a liberdade dos outros, a não ser nos tais regimes do passado.

Não, não estamos numa ditadura ou regime totalitário, não exageremos, não existe prisão, e o facto de eu estar aqui a escrever sobre isso confirma-o. Todavia, tal não significa que não haja, no Ocidente, dinâmicas do tipo totalitário. E se há lugar onde não faltam sinais perturbadores que apontam na direcção de um perigoso totalitarismo é, precisamente, na UE. De outra forma, como definir o vastíssimo oceano legislativo que visa a caça ao dissidente, renomeado tabagista, negacionista, racista, fascista, nazista, machista, xenófobo, homofóbico, senão de ordem totalitária? Como definir a uniformização forçada e alinhamento acrítico, senão de natureza totalitária? Como definir uma UE que se sente dona das nossas vidas, saúde, gostos, dados pessoais, moral, crenças, tradições e das nossas ideias? A resposta não muda: totalitária.

Não será de todo por acaso que, em As Origens do Totalitarismo, Annah Arendt insiste em dizer que totalitarismo se impõe sempre que o poder se concentra nas mãos de uma pequena elite e que o seu sucesso depende do controlo das pessoas, em todos os aspectos da sua vida. Controlo que é exercido pela elite de forma total, porque ela controla a história, a informação, o pensamento, a cultura e tenta moldar cada cidadão, transformando-o no sujeito perfeito para o totalitarismo. Essa metamorfose é acelerada e imposta através do medo, alma dessa complexa forma de governo. O medo, alimentado pela propaganda contínua, entorpece efectivamente as consciências, ao ponto de não se distinguir mais a realidade da ficção, o verdadeiro do falso, tornando os cidadãos facilmente manipuláveis e é justamente pelo medo que a elite cria o súbdito (homem) perfeito.

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Como sabemos, tudo isto foi colocado em prática durante o período pandémico. Vimos o quanto foi fácil para a elite transformar as pessoas em conchas vazias para depois as encher com o que bem quis e lhe apeteceu e durante o tempo e as vezes que quis e lhe apeteceu. Também vimos o quanto foi fácil reduzir os cidadãos à semiclandestinidade, ao proibi-los de usarem a própria cabeça para pensar. Quem diz cidadãos diz media. Hoje, salvo raras excepções, vivemos numa espécie de homogeneidade absoluta da informação, sobretudo televisiva.

Agora, e depois da expropriação ecológica de carros e casas “não conformes” com a política climática europeia, o Projecto de revisão do regulamento EcoDesign proíbe a venda de caldeiras de gás que não cumpram os requisitos mínimos de eficiência sazonal, igual a 115%, até 1 de Janeiro de 2029. Ou seja, de todas as caldeiras de gás, visto que nenhuma delas tem um índice de eficiência de 115%.

Como se não bastasse, a proposta de regulamento sobre embalagens proíbe, entre outras coisas bizarras, o uso de embalagens descartáveis para frutas e legumes com peso inferior a um quilo e meio. Portanto, ou se consome uma embalagem de um quilo e meio de salada no prazo de dois/três dias, ou não se come, a não ser que se tenha um supermercado à porta. Impõe, ainda, a uniformização até 2030 das garrafas de vinho e a redução do seu peso, o que significa dizer adeus às garrafas magnum e aos formatos especiais tão apreciados por coleccionadores e apreciadores de vinho.

Além disso, a Comissão não quer que os cidadãos usem roupa da Zara, mas da Gucci, Prada ou Louis Vuitton, e se por qualquer infortúnio financeiro não for possível comprar roupa de qualidade, então que arranjem a roupa que têm ou que comprem roupa em segunda mão da Vinted ou no Olx. Sarcasmo à parte, foi o que anunciou o vice-presidente da Comissão, Frans Timmermans, aquando da apresentação do novo pacote de propostas destinadas a promover a moda sustentável, inserido no Plano de Acção para a Economia Circular: “até 2030, a roupa colocada no mercado da UE deve ser de longa duração e reutilizável”.

A lista podia continuar e continuar; em nome do Moloch em que se transformou a política climática europeia, não há nada que a Comissão não use para impor cada vez mais e mais dolorosos sacrifícios e privações pessoais. De igual modo, também não há nada que a impeça de privar os cidadãos das suas liberdades mais elementares na área da saúde.

É aqui, aliás, que a “tentação totalitária”, parafraseando Jean- François Revel, se torna insuportável, senão mesmo repugnante, porque, para a UE, já não existem cidadãos saudáveis, mas “cidadãos em risco”, a expressão causa arrepios. E como estamos todos “em risco”, a Comissão considera que lhe cabe a si adoptar “medidas draconianas” para proteger a nossa saúde. Só alguém com um instinto de morte teria algo a objectar sobre semelhante desígnio, a não ser, claro está, que reconheça que impor uma saúde forçada não é compatível com as democracias liberais e de Direito.

Mas que medidas draconianas são essas? São aquelas que estigmatizam alimentos que fazem parte da nossa cultura, tradição e hábitos alimentares, como vinho, carne vermelha e charcutaria, para direccionar o consumidor para outros produtos, como carne sintética, vinho sem álcool, insectos e assim por diante. São aquelas que comparam uma garrafa de vinho com 14.5% de teor alcoólico, com uma garrafa de rum com 75,5% de teor alcoólico e estas com o com tabaco, pelo que devem ser rotuladas como substâncias tóxicas, e proibidas de patrocinar eventos desportivos (como, por exemplo, a Meia Maratona do Douro Vinhateiro).

Como se sabe, o Parlamento Europeu votou por larga maioria pela retirada dos rótulos. Não obstante, a Comissão autorizou a Irlanda a colocar alertas “wine kills” nas garrafas de vinho, o que diz muito não apenas sobre o que pensa a Comissão da democracia, como do seu papel de guardiã dos Tratados, uma vez que, conforme admitiu a directora do departamento de saúde irlandês, Claire Gordon, “esta autorização é, de alguma forma, uma violação do mercado único”.

Estas medidas fazem parte do Plano de Acção para melhorar a saúde dos cidadãos (Europe’s Beating Cancer Plan: Let’s strive for more), assim como aquela que visa criar uma geração livre de tabaco” até 2040 (achavam que a ideia tinha sido do Governo? Ele está só a desempenhar o papel do “bom aluno” da UE na luta contra o tabaco).

Enquanto isso, um grupo de activistas viciados em saúde, descontentes com a ofensiva antitabaco sem precedentes da Comissão, lançou uma Iniciativa que apela à Comissão para antecipar a geração livre de tabaco até 2028 e que proíba a venda de tabaco e de produtos à base de nicotina aos cidadãos nascidos a partir de 2010. Atenção, não só pelo período da menoridade, que ainda seria razoável, mas para sempre.

Se todas estas decisões não seguem o pior de um regime totalitário (Hitler foi o primeiro a promover campanhas contra o tabaco, para preservar a raça ariana), então podemos dizer que a UE corre o risco de regressar à Idade Média, com a fragmentação dos mercados por falta de logística, com os cidadãos reduzidos a súbditos, vestidos com roupas velhas e remendadas, sem carro, obrigados a ter saúde e a fazer pelo menos seis check-ups por ano, em suma, a viver como velhos desde novos. Mas, pelo amor de Deus, será uma Idade Média verde.