Todos estamos presos no mesmo movimento: os séculos passam e as civilizações também; o mármore esculpido torna a ser pedra e toda a construção pode voltar ao pó num dia só. Vimos isso agora quando ardeu o Museu Nacional do Rio de Janeiro, mas vemos isso de muitas outras maneiras. Nas memórias que ficam para sempre perdidas porque ninguém cuidou de as guardar; nas esculturas involuntariamente amputadas e nos impérios voluntariamente decapitados; nos acervos que apodrecem em lugares frios e escuros, sem luz que os ilumine; nos documentos em que ninguém toca por estarem reservados a sábios; nos escritos e manuscritos que se acumulam em arquivos à espera de mestres de leitura, tradução e transposição.

A memória dos homens não é a sua menor fraqueza, diria Yourcenar. Há ainda maiores e piores, mas a memória, sempre tão frágil e tão efémera, merece ser restaurada, libertada, reconhecida e exposta ao ar. O esquecimento é próprio da condição humana e também por isso cuidar da memória histórica, resgatando património cultural e musical, eleva a nossa condição. Recuperar obras antigas, descobrir inéditos, revelar tesouros incríveis a partir dos quais se pode estudar e investigar, aprender e ensinar é humanizar a própria Humanidade.

O MPMP, Movimento Patrimonial pela Música Portuguesa, faz isto mesmo há quase dez anos. Hoje é uma rede incrível que se estende por vários países e se tornou uma plataforma constituída por centenas de músicos do espaço lusófono, mas em 2009, começou por ser o sonho de um grupo de jovens amigos, todos alunos do Conservatório Nacional, quando se deram conta de que havia muitíssima música portuguesa de excecional qualidade que não era tocada nem conhecida.

Na altura, os músicos fundadores tinham pouco mais de 18 anos, mas a paixão com que se dedicaram a criar uma base de dados de compositores, a identificar e a ligar musicólogos, instrumentistas e melómanos, foi de tal forma contagiante e inovadora que imprimiram um ritmo novo à divulgação da música portuguesa. Em 2010 publicaram a primeira edição da revista glosas, bem como vários CDs, livros e partituras, promovendo ao mesmo tempo incontáveis iniciativas musicais entre concertos, recitais e sessões de apreciação musical. Apenas dois anos depois, em 2012, criaram o Ensemble MPMP para promover o diálogo entre a criação contemporânea e a estreia moderna de repertório esquecido ou praticamente desconhecido do público.

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Ontem o MPMP lançou a 17ª edição da revista glosas num maravilhoso recital de piano dedicado ao compositor Vianna da Mota, no Palácio Foz. Raúl da Costa, um dos mais prestigiados intérpretes da nova geração, tocou a Ballada, mas também outras peças que Busoni e Luiz Costa dedicaram ao mestre português. Assistir aos concertos e recitais produzidos pelo MPMP é viver sempre a dupla emoção de poder ouvir hoje alguns dos melhores músicos portugueses da atualidade tocarem os melhores compositores nacionais de sempre, ficando com a certeza de que todos os nossos grandes mestres saíram da sombra (alguns mesmo do esquecimento!) e voltaram a ser ouvidos.

Falo de dupla emoção, mas talvez devesse dizer múltipla pois para leigos como eu, que pouco ou nada percebem de música clássica e contemporânea, é fascinante ouvir tocar numa sala belíssimas peças de compositores que são nossos. Talvez a maior surpresa que o MPMP revela em cada temporada é esta mesmo, de nos dar a conhecer uma fabulosa memória musical que muitos de nós, portugueses, desconhecíamos existir.

Estreias modernas de composições antigas é, de certa forma, o coeur du coeurdo MPMP, que descobre e redescobre compositores do passado, ligando-os a compositores vivos, divulgando a sua música pelas mãos de intérpretes novos. O novo Livro da Temporada do MPMP, com a programação musical de Setembro a Dezembro é eloquente desta vocação de um movimento que cresce e alastra, sobre o qual o meio musical nacional e internacional se interessa cada vez mais, mas o MPMP não se debruça apenas sobre memórias remotas.

Setembro foi também o mês em que o MPMP lançou o Volume II do Songbook, de Bernardo Sassetti, celebrando a vida e obra do nosso tão querido como inesquecível pianista e compositor. O lançamento, feito no Teatro São Luiz, contou com testemunhos de quem conheceu bem o Bernardo e teve momentos musicais por José Cavaco, João Vasco Almeida, Daniel Bernardes e Mário Laginha.

Ontem, no Palácio Foz, conversei com Edward Luiz Ayres d’Abreu, o presidente da Direção do MPMP, sobre a história do movimento e a nova temporada que revela também a música contemporânea e não apenas antiga. Falei com ele no final do excelente recital de Raúl da Costa e fiquei a perceber ainda melhor como este movimento funciona em rede, fazendo com que obras antigas e modernas vivam mais tempo, mas também estimulando compositores a escreverem sobre textos portugueses.

O MPMP criou o Prémio Musa, em articulação com o Museu de História Natural e da Ciência da Universidade do Porto, para distinguir a excelência musical da composição contemporânea de tradução erudita ocidental. A ideia é “promover a língua portuguesa como veículo expressivo” e, nesta edição, os compositores são convidados a compor peças que celebrem musicalmente o centenário de Sophia de Mello Breyner Andresen, a partir dos seus poemas. O compositor que for distinguido com o Prémio Musa não só ganhará o valor monetário do prémio como verá a sua obra ser editada em partitura e gravada em CD, ficando ainda associado à nova temporada do MPMP como “compositor residente”, trabalhando com os músicos do Ensemble MPMP, podendo criar novas obras para outros concertos.

É fantástico ver tudo isto acontecer em direto e assistir às atuações dos músicos, mas também impressiona saber que os estímulos musicais deste Movimento Patrimonial pela Música Portuguesa não se resumem à convocação de talentos para poderem estrear novas peças. O MPMP aposta muito mais alto e quer ir muito mais longe na revelação dos novos talentos, criando uma rede de músicos capazes de desocultar a nossa memória musical coletiva, mas também de inovar e fazer com que uma sinfonia com 300 anos possa competir com as últimas séries da Netflix. E este é, porventura, o desafio mais fabuloso de todos: renovar os públicos num mundo altamente competitivo e vertiginosamente acelerado, em que tudo é descartável, frágil e efémero. A começar pela memória dos homens.