Cumprindo o que pode ser considerado um costume regimental do processo legislativo comum, e embora já sem consequências legislativas, a leitura aos deputados da mensagem do Presidente da República sobre a devolução, sem promulgação, do Decreto da Assembleia da República n.º 199/XIV, que “Regula as condições em que a morte medicamente assistida não é punível e altera o Código Penal” (vulgo «lei da eutanásia»), encontrando-se a Assembleia da República dissolvida (por força do Decreto do Presidente da República n.º 91/2021, de 05.12), foi agendada para a 1ª reunião da Comissão Permanente marcada para o dia 9 de Dezembro.
Como consta da Nota divulgada no “site” da Presidência, o Presidente da República, ao devolver o diploma à Assembleia da República, formulou duas solicitações, ambas sobre questões surgidas só nesta segunda versão da lei:
- “Que clarificasse o que parecem ser contradições no diploma quanto a uma das causas do recurso à morte medicamente assistida. O decreto mantém, numa norma, a exigência de “doença fatal” para a permissão de antecipação da morte, que vinha da primeira versão do diploma. Mas, alarga-a, numa outra norma, a “doença incurável” mesmo se não fatal, e, noutra ainda, a “doença grave”. O Presidente da República pede que a Assembleia da República clarifique se é exigível “doença fatal”, se só “incurável”, se apenas “grave”.
- A deixar de ser exigível a “doença fatal”, o Presidente da República pede que a Assembleia da República repondere a alteração verificada, em cerca de nove meses, entre a primeira versão do diploma e a versão atual, correspondendo a uma mudança considerável de ponderação dos valores da vida e da livre autodeterminação, no contexto da sociedade portuguesa.”
Ao contrário do que nervosamente alguns se apressaram a defender, as contradições, incongruências e perplexidades detectadas pelo Presidente da República no referido diploma são ostensiva e clamorosamente reais e verdadeiras, pelo que só por ignorância ou por má fé se poderá afirmar o contrário. Até eu, em anterior artigo de opinião aqui publicado, já tinha alertado para as mesmas, indo até mais longe do que foi o Presidente da República:
“Importa desde já chamar a atenção para a circunstância de que da leitura deste novo nº 3 aditado [ao artigo 3º], no confronto com o que dispõe o nº 1, resultar uma perplexidade e uma contradição inexplicáveis: se, de acordo com o disposto no nº 1, constituem requisitos da antecipação da morte, requisitos esses de verificação cumulativa obrigatória, o requisito relativo à vontade da pessoa que pede para morrer – vontade essa que tem de ser actual, reiterada, séria, livre e esclarecida -; o requisito relativo à situação de sofrimento intolerável; e o requisito relativo à existência de “uma lesão definitiva de extrema gravidade” ou de uma “doença incurável e fatal”, como é que, no novo nº 3, se pode simplesmente dizer que a morte ocorre quando a pessoa se encontre numa das seguintes situações: “lesão definitiva de gravidade extrema” ou “doença grave ou incurável”??
Quererá isto significar que os outros requisitos previstos no nº 1 já não têm de se verificar no caso concreto? Por outro lado, no que se refere à natureza da doença, quererá isto significar que, afinal, já não se exige que a doença seja “incurável e fatal”, bastando que a doença seja uma “doença grave” ou uma “doença incurável”?? Existirá algum propósito escondido nesta redacção contraditória e confusa ou foi apenas incapacidade dos seus autores em encontrarem uma redacção melhor?
Mas não é apenas este novo nº 3 que contém uma redacção manifestamente deficiente e contraditória: também o aditado e novo artigo 2º, na maior parte das “Definições” que apresenta, padece do mesmo mal:
“(…) Para além de ser uma péssima técnica gramatical, linguística, jurídica e legiferante colocar o definido na definição e de não se entender o interesse em definir “sofrimento intolerável”, se se diz que é a própria pessoa quem determina que o seu sofrimento é intolerável (e, pelos vistos agora o legislador da eutanásia também se preocupa com o sofrimento espiritual), importa perguntar: onde está a definição de “doença incurável e fatal”, se esse é o requisito constante do nº 1 do artigo 3º? E quanto à lesão definitiva de gravidade extrema, onde está o cumprimento das exigências de constitucionalidade e de determinabilidade feitas pelo TC no seu acórdão?? Não estão!”
Ora, como afirmou o Professor Vital Moreira, dando razão ao Presidente da República quanto “à inconsistência conceptual do diploma”: “Não dá para entender esta falha de rigor num diploma destes, já em segunda edição”; “Pouco cuidadosos foram e só de si mesmos se podem queixar”; e “eu preferira destacar a imperdoável incúria dos deputados”.
É, no entanto, legítimo questionarmo-nos sobre se a falta de rigor do texto se deveu mesmo a incúria dos deputados ou se, pelo contrário, não terá antes sido propositada?
Quanto à maioria dos deputados que votaram a favor desta nova versão do diploma não tenho dúvidas de que terá sido incúria, pois provavelmente muitos deles nem sequer tiveram tempo para ler (e muito menos para analisar) o que estavam a votar (refira-se que o texto foi distribuído apenas dois dias antes da votação em 05.11). O agendamento na 25ª hora é o que dá, sendo que, em acréscimo, nas intervenções feitas em Plenário no dia da discussão (04.11) nem uma só palavra foi dita a respeito das propostas concretas de alteração que iriam ser votadas no dia seguinte. Nem uma só palavra. E eu estava lá a assistir para o comprovar.
Já quanto aos deputados autores da nova versão do diploma, não creio que tenha existido incúria, mas sim propósito. E isto por várias razões:
- porque são pessoas determinadas e empenhadas, algumas delas, há muitos anos, neste ponto da sua agenda político-ideológica da instituição de um “direito” à morte súbita, medicamente provocada ou auxiliada;
- porque tiveram muitos meses para redigir as propostas de alteração à versão anterior deste diploma (na sequência do veto por inconstitucionalidade de 15.03.2021), sendo que aquelas basicamente se limitaram ao aditamento de um novo artigo (2º) com definições, à eliminação da palavra “antecipação” dos nºs 1 e 2 do (agora) artigo 3º e ao aditamento, neste artigo, de dois novos números (nºs 3 e 4);
- porque a falta de rigor e as imprecisões, incongruências, deficiências e insuficiências são um apanágio de todo o diploma, e não apenas de dois dos seus artigos, sendo que quanto mais imprecisa e contraditória for a letra da lei, maior liberdade e amplitude existie na sua aplicação e nas sentenças de morte decretadas, situação agravada pela ausência total de controlo e garantia do cumprimento da lei a tempo de evitar a produção do irreversível dano de morte; e,
- porque se vê nos deputados autores da lei uma clara intenção de tentar desligar ou, pelo menos, afastar, tanto quanto for possível, o regime da despenalização da “morte medicamente assistida” do facto que supostamente o caracterizaria e justificaria, que é o da antecipação da morte por ser certa a sua ocorrência tendo como causa uma doença incurável e fatal ou uma lesão definitiva de gravidade extrema, por forma a que seja suficiente ou bastante, para que a morte seja executada, a formulação de um pedido de “morte medicamente assistida” por quem se encontre numa situação de sofrimento por si considerado de intolerável, sem que a causa física do mesmo (doença ou lesão) tenha natureza fatal (e muito menos terminal).
Quanto a esta última razão, vê-se essa intenção nomeadamente na eliminação da palavra “antecipação” dos nºs 1 e 2 do artigo 3º, mas viu-se também, e diria de forma escandalosa, naquilo que aconteceu no momento da redacção final do diploma em sede da 1ª Comissão, para onde o diploma voltou após terem sido aprovadas em Plenário as poucas alterações ao mesmo, oportunamente denunciado pelos deputados Miguel Arrobas e Telmo Correia do CDS na reclamação que apresentaram contra o Decreto nº 199/XIV, após este ter sido publicado (na sua 1ª versão) no Diário da Assembleia da República.
Na realidade, como consta da referida reclamação, a 1ª Comissão, em manifesta violação das normas regimentais (e constitucionais) aplicáveis e extravasando claramente as suas competências e os limitados poderes de que dispunha nesta matéria, decidiu por motu próprio substituir, sob o pretexto de “uniformização” do texto, a expressão «antecipação da morte» pela expressão «morte medicamente assistida» em vinte e três artigos do diploma, procurando, por essa via, não uniformizar o texto, nem aperfeiçoar a sua sistematização e o seu estilo, mas tão simplesmente (tentar) eliminar do mesmo qualquer referência à verdadeira natureza do procedimento em causa, procedimento esse que se destina a antecipar a morte de uma pessoa e que se concretiza, ou pode concretizar, nessa antecipação da morte.
A referida reclamação foi, como não poderia deixar de o ser, deferida pelo Presidente da Assembleia da República, o que levou a que o texto do diploma tivesse de ser corrigido, por forma a torná-lo conforme com o que foi deliberado pelo Plenário, e objecto de uma nova (segunda) publicação no Diário da Assembleia da República, versão essa que viria a ser vetada pelo Presidente da República.
Mas quanto ao veto político do Presidente da República, não posso deixar de dizer, neste momento, ainda o seguinte: por um lado, não consigo compreender como é que pode ser afirmado “que o que está em causa é o entendimento da Assembleia da República – ao ponderar o direito à vida, de um lado, e a liberdade à autodeterminação e realização pessoal, do outro – quanto ao sentimento dominante na sociedade portuguesa”, quando os deputados votaram de acordo com a sua consciência, sem determinação ou imposição partidárias. O voto de 230 deputados exercido de acordo com a sua consciência não reflecte, nem contém, nem representa o sentimento dominante da sociedade portuguesa.
Por outro lado, também não consigo compreender como é que o Presidente da República pode afirmar que “não pesa na decisão que tomo qualquer posição religiosa, ética, moral, filosófica ou política pessoal – que, essa, seria mais crítica – mas, apenas – como aconteceu noutros ensejos similares – o juízo que formulo acerca do que corresponde ao que considero ser o sentimento valorativo dominante na sociedade portuguesa”, quando o órgão de soberania «Presidente da República» é o único órgão de soberania unipessoal, cujo titular é eleito por sufrágio universal e directo não com base num programa político-partidário, mas precisamente com base na posição política, ética, moral, filosófica ou religiosa pessoal do candidato ao cargo. Acresce que, se os 230 deputados votaram de acordo com a sua consciência, por que razão não poderia ou não pode o Presidente da República vetar de acordo com a sua consciência?
Ao invés, já consigo compreender que o Presidente da República, quanto a esta segunda versão do diploma da Assembleia da República, tenha decidido não suscitar a fiscalização prévia da constitucionalidade pelo Tribunal Constitucional pelas razões que indicou: “Por um lado, por haver prévias aparentes incongruências de texto a esclarecer, e, por outro lado, por desse esclarecimento decorrer, largamente, o tipo de juízo jurídico-constitucional formulável.”
Sem prejuízo de a minha compreensão não significar necessariamente que concorde com a decisão tomada pois considero que existem na nova versão da lei razões mais do que suficientes para a mesma ter sido enviada para o TC – padecendo a mesma de ainda mais inconstitucionalidades do que a anterior versão -, o que importa salientar é que o Presidente da República deixou bem claro no seu veto político (e é isso que conta) que não formulou nenhum juízo jurídico-constitucional quanto à nova versão da lei e que a formulação desse juízo estava dependente do prévio esclarecimento solicitado à Assembleia da República.
Não sendo este o momento para analisar esta questão, ela é, contudo, da maior e crucial importância (para o futuro) dado que as normas alteradas e aditadas na nova versão da lei suscitam, por si só, inúmeros problemas de constitucionalidade, inclusive face à argumentação constante do Acórdão do TC nº 123/2021, de 15.03.2021, não só no que se refere à eliminação da palavra «antecipação» do nº 1 e aos novos nºs 3 e 4 do artigo 3º, mas também quanto às definições constantes do (novo) artigo 2º, muito em particular as definições de «morte medicamente assistida», de «doença grave ou incurável», de «lesão definitiva de gravidade extrema» e de «sofrimento».
Seja como for, com a dissolução da Assembleia da República, a eleição dos novos deputados marcada para 30 de Janeiro de 2022 e o início de uma nova Legislatura no dia da primeira reunião da Assembleia após as eleições (ocorrendo o termo da presente XIV Legislatura no dia imediatamente anterior), morre esta lei da eutanásia, pelo que um novo processo legislativo, com a apresentação de novos projectos de lei, terá de ser iniciado pelos novos deputados, caso estes assim o desejem, seguindo-se depois os passos normais do processo legislativo comum, nomeadamente a audição de entidades.
Sem prejuízo da caducidade das iniciativas legislativas no termo das legislaturas normais, no caso de termo da legislatura decorrente da dissolução da Assembleia da República existe o precedente dos vetos do Presidente da República Jorge Sampaio exercidos em 31.01.2002: através do Decreto do Presidente da República nº 3/2002, de 18 de Janeiro, foi dissolvida e Assembleia da República e fixado o dia 17 de Março de 2002 para eleições legislativas; no dia 31 de Janeiro de 2002 o Presidente Jorge Sampaio vetou quatro decretos da Assembleia da República (vetou por inconstitucionalidade o Decreto nº 185/VIII e vetou politicamente os Decretos nºs 189/VIII, 192/VIII e 197/VIII); a 1ª Sessão Legislativa da IX Legislatura teve início a 5 de Abril de 2002 e a 4 de Abril as iniciativas legislativas que estiveram na origem dos referidos decretos caducaram.
Assim sendo, se, porventura, por mera hipótese académica, vier a ser iniciado um novo processo legislativo, for aprovada pela nova Assembleia da República uma nova lei da eutanásia e a mesma for enviada ao Presidente da República para promulgação, então espero que Sua Excelência o Senhor Presidente da República a envie para o Tribunal Constitucional, requerendo a apreciação preventiva da constitucionalidade de muitas das suas normas.
E espero que o faça por uma questão de respeito à Constituição da República Portuguesa, aos portugueses e a Portugal. E se na sua decisão voltar a não pesar qualquer posição religiosa, ética, moral, filosófica ou política pessoal — apesar de ter sido eleito e reeleito Presidente da República por causa das suas posições pessoais (ou apesar delas) –, então espero que pese na sua decisão aquilo que é, seguramente, o sentimento dominante na sociedade portuguesa, a recusa da morte a pedido e a defesa intransigente da VIDA, de todas as vidas, especialmente daquelas que mais precisam.