A Catedral de Notre-Dame não devia ter ardido. Não é justo, todos o sabemos. Sabemos que a Notre-Dame foi construída há mais de oito séculos. Sabemos que testemunhou, num lugar privilegiado, as páginas mais belas e as mais negras da História francesa. Sabemos que sobreviveu à Guerra dos Cem Anos, ao Terror jacobino, ao imperialismo napoleónico, à Comuna de Paris, às sangrentas batalhas da Primeira Grande Guerra e à experiência cruel da ocupação nazi. Sabemos, sobretudo, que a beleza da Notre-Dame nos falava sobre a eternidade.
Obviamente, a catedral será reconstruída e, espera-se, devolvida à sua monumentalidade original. Impressiona, aliás, ver a determinação com que os franceses assumiram essa tarefa. Mas as catedrais, como bem lembrava o Arcebispo de Paris, não são apenas um monte de pedras. “Numa catedral, como numa pessoa humana, há um princípio de organização, um princípio de unidade, uma inteligência criadora.” A Catedral de Notre-Dame tem tudo isso. As suas torres altas estendem-se para o céu e os seus largos vitrais rasgam fendas para a luz. Cada uma das suas imagens, cada um dos seus altares, cada detalhe embutido no rendilhado dos capitéis, na fealdade das gárgulas ou na robustez dos contrafortes presta testemunho sobre um tempo que está para além do tempo. Sobre um critério que se ergue mais alto, acima das desventuras das circunstâncias e das culturas.
Nestes dias de choque, em que uma Europa profundamente secularizada chorou os danos provocados numa catedral católica, fomos recordados de que a beleza é uma linguagem que não conhece fronteiras. Mas fomos também confrontados com aqueles que, perante a catástrofe, quiseram contribuir para a destruição da Notre-Dame, negando a sua identidade de edifício religioso católico. Entre nós, a inevitável Fernanda Câncio indignou-se por ver o Presidente francês dar as suas condolências “a todos os católicos e a todos os franceses” e perguntou se, para lamentar o incêndio, era mesmo preciso inscrever-se “no guichet dos católicos”; Tiago Moreira de Sá, o homem que Rui Rio escolheu para as Relações Internacionais, sugeriu que a França convidasse “todas as religiões a participarem na reconstrução da Catedral, fazendo dela um exemplo de tolerância e de diálogo inter-religioso”; Maria João Marques decidiu que a Notre-Dame era (apenas) “um símbolo europeu” e que não pertencia àquilo que define como “clubismo cristão”.
Sob a aparência da tolerância, cada uma destas reacções esconde um profundo desprezo pela identidade histórica da Notre-Dame. Vêem-na como veriam um castelo, ou um palácio, ou uma casa de ópera, ou um monte de pedras, desde que fosse esteticamente apelativo. Vêem-na como uma ruína, uma sentinela do passado, uma lembrança do que já foi. Escapa-lhes à vista que a catedral não esgotou a sua função no dia em que terminou de ser construída, para ficar inane e magnífica, em jeito de glorificação do engenho de quem a levantou.
A catedral de Notre-Dame, como todas as igrejas, foi erguida para ser um albergue da Fé; um testemunho vivo sobre a aliança entre Deus e os homens. Se ela é bela, todos podemos apreciar-lhe a beleza. Mas apreciá-la-emos ainda melhor se não fizermos da catedral uma ruína à força. Se compreendermos que ela está viva, porque é habitada por um povo que a ela acorre, com piedade e devoção, para celebrar os mistérios da sua Fé e para colocar diante de Deus o seu desejo de plenitude. As grandes igrejas europeias são importantes marcos da nossa História colectiva. Mas são também, e sobretudo, igrejas. E é importante que as tratemos como tal. Se não, não percebemos nada.
Em 1904, no fragor de um grande debate sobre a laicidade em França, Marcel Proust escreveu um belo texto, sob o título «La Mort des Cathédrales». Proust propunha aos leitores que imaginassem o que restaria das velhas catedrais num tempo pós-cristão.
Nesse grande silêncio da Fé, as catedrais subsistiriam, testemunhas solitárias, “mudas e abandonadas” de um credo esquecido. Na sua monumentalidade, continuariam a marcar a paisagem e a História dos homens. Atrairiam o olhar de todos, mas ninguém as poderia interpretar. Multidões se maravilhariam com a sua beleza, mas elas seriam “monumentos ininteligíveis”, incapazes de testemunhar as razões da sua construção; de comunicar a doutrina em nome da qual foram levantadas.
A separação forçada e imposta entre a beleza das catedrais e a Fé é um divórcio lesivo para ambas as partes. As catedrais precisam da Fé, porque, como dizia Proust, “não são apenas os mais belos ornamentos da nossa arte, mas também os únicos que ainda vivem a sua vida integral; que permanecem em sintonia com o objectivo para o qual foram construídos”. E a Fé precisa das catedrais; precisa do Belo, para apresentar, no nosso tempo, sinais vivos da eternidade. Precisa do Belo para nos lavar os olhos, sujos pela absolutização da técnica, da eficiência, do progresso e da utilidade. Precisa do Belo, para nos explicar, demonstrando-o, que ele caminha a par e passo com o Bem e a Verdade. Precisa desse Belo que nos desarma e nos explica de onde vimos e para onde vamos.
Nas palavras de Proust, “poderíamos dizer às igrejas o que Cristo disse aos discípulos: «Se não comerdes mesmo a carne do Filho do Homem e não beberdes o seu sangue, não tereis a vida em vós» (Jo 6, 53). Essas palavras misteriosas, mas tão profundas do Salvador tornam-se, nesta acepção nova, um axioma estético e arquitectónico. Quando o sacrifício da carne e do sangue de Cristo, o sacrifício da Missa, não for mais celebrado nas igrejas, deixará de haver vida nelas”. Depois das chamas, a Catedral de Notre-Dame será reconstruída. Não como um monte de pedras, mas como um testemunho vivo dessa beleza que nos salva.