Comecei a lidar com a morte muito cedo. Primeiro partiram os meus avós e tios mais velhos, mas isso pareceu-me ser a lei da vida. Pouco depois começaram as perdas inesperadas e essas nada tiveram de natural. Uma prima muito querida com 14, num acidente dramático, logo a seguir um amigo da minha idade, quando ainda éramos adolescentes, depois um afilhado com 18, seguido de mais dois amigos e de outras duas queridas amigas. Tirando a minha prima, todos morreram por doença e todos estavam cheios de vontade de viver. Nenhum queria morrer.
O meu amigo, que era ainda adolescente, chamava-se Paulo e era um verdadeiro explorador do fundo do mar. Era também um dos melhores amigos do meu irmão mais velho e partiam juntos para grandes e demoradas aventuras submarinas. De tal maneira eram amigos, que chegaram a construir com as suas próprias mãos, na garagem, uma bicicleta para dois, um tandem, em que se deslocavam para as idas à praia e outras saídas. Eram muito alegres e éramos todos muito cúmplices. Sempre que puxo atrás o filme da nossa amizade, da nossa familiaridade, volto a dias felizes e despreocupados, em que nos entretínhamos com tudo e com coisa nenhuma. Bastava-nos a presença uns dos outros, mais a certeza do amor dos amigos do grupo alargado.
Quando o Paulo soube que tinha cancro fez tudo o que era preciso fazer, sujeitando-se aos tratamentos e protocolos da época. Uns mais dolorosos que outros, mas todos eles erosivos e altamente condicionantes. Deixou de poder mergulhar, mas a ideia de poder voltar a ver o fundo do mar mantinha-o vivo e cheio de esperança. Nunca perdeu a esperança.
Um dia, já no seu derradeiro período de internamento, disse-me que o que mais lhe custava era ter sido “atirado” para a ala dos doentes dados como perdidos, por quem nada mais havia a fazer. Sofria na pele a desistência dos médicos e enfermeiros. Doía-lhe brutalidades estar num hospital, no auge da sua vulnerabilidade, e não poder contar com os profissionais de saúde.
– Sabes o que fazem nesta enfermaria? Tiram-nos a campainha quando adormecemos e põem-na atrás da cama, para não conseguirmos lá chegar e não podermos chamar ninguém durante a noite.
Estas palavras ficaram gravadas na minha memória desde esse dia. Continuaram a fazer eco ao longo de anos. Décadas. O Paulo já não tinha grande amplitude de movimentos e era impensável conseguir chegar sozinho a uma campainha de emergência propositadamente atirada para trás da sua cabeceira. As noites eram longas e passaram a ser o seu pior tormento a partir do momento em que o transferiram para a ala dos “já não há a nada a fazer”.
Depois de cada visita, tínhamos o cuidado de deixar a campainha na sua mão, presa ao seu braço, exigindo que ninguém a retirasse do seu alcance, mas à noite a campainha desaparecia sempre para trás da cabeceira.
Foi a primeira vez que senti o abalo sísmico provocado pela desistência humana. Outras vezes se seguiram.
No hospital onde, poucos anos depois, outro amigo demasiado novo foi internado, já havia uma Unidade de Dor, mas tinha um guichet e horário de funcionamento: das 8h00 às 20h00. Durante as doze horas do dia todos os doentes podiam recorrer a esta unidade e aos cocktails químicos que permitiam minimizar as suas dores, mas durante a noite o guichet estava fechado.
Como todos sabemos, as dores doem muito mais durante a noite. Criar uma Unidade de Dor num serviço oncológico para servir os doentes apenas nas horas em que, supostamente, estão mais distraídos, abandonando-os à sua sorte e aos seus padecimentos noturnos, chegou a parecer-me perverso. Uma forma mais subtil de abandono, mas em todo o caso eloquente de má gestão de recursos e de uma certa desistência humana.
Nunca conseguirei esquecer os relatos das dores excruciantes que este meu amigo teve nas noites a fio que passou naquele hospital, antes de ter alta para poder morrer em casa.
Vivi, também à cabeceira e numa proximidade total, outra realidade de desistência de alguns serviços: uma criança de dez anos, diagnosticada com cancro terminal, foi internada numa enfermaria de adultos, onde permaneceu longos meses. Durante um ano (um ano, leram bem), esta criança esteve entre a vida e a morte, teve metástases e mais metástases, foi operada incontáveis vezes e fez convalescenças duríssimas. Apeteceu-lhe morrer muitas vezes. Aos pais, avós, familiares e amigos também passou muitas vezes pela cabeça o mesmo: o melhor seria morrer e ser poupada a todo aquele sofrimento.
Foi terrível assistir a tudo isto, mas valeu a pena não desistir. Hoje, tem mais de 30 anos, não foi amputada como se chegou a prever, é cientista e investigadora, presta um serviço incalculável ao país e à humanidade. Ah, e é muito feliz no amor e na relação com os que estão à sua volta.
Devo ao Paulo, ao Francisco e à Joana, minha afilhada, a decisão de ser voluntária em cuidados paliativos. Devo-lhes a eles a consciência desta especialidade, desta forma avançada de Medicina, mas também lhes agradeço cada hora do dia e da noite que passei com os doentes e as suas famílias, nos anos em que fui voluntária numa unidade de cuidados paliativos.
Sem saberem, a Joana, o Francisco e o Paulo fizeram nascer em mim a urgência em conhecer melhor os cuidados paliativos. Por eles e por causa de tudo o que sofreram, estudei a fundo, fiz formações, participei em debates, frequentei cursos dentro e fora do país e tornei-me voluntária. Graças a eles vivi momentos radicalmente transformadores e assisti a mudanças profundas nos doentes, mas também nos profissionais de saúde.
Nos paliativos, ninguém abandona ninguém, ninguém desiste de ninguém, ninguém diz ao outro que a sua vida não vale a pena, nem se chega à cabeceira para concordar que mais vale morrer do que viver.
A morte é-me muito familiar por tudo isto, mas também por me ter sido dado viver a realidade de pais em luto. Há quem atravesse a vida sem grande proximidade com a morte, mas a mim calhou-me ser muito próxima de pais que perderam os seus filhos. E com todos eles aprendi que só é possível recuperar das mortes se tivermos feito tudo o que estava na nossa mão para salvar as suas vidas.
Aprendi que desistir não serve ninguém: nem os doentes, nem as suas famílias.