Caro leitor, seja bem vindo a uma clássica crónica “À hora a que escrevo isto”, um texto que corre o risco de estar desactualizado ainda antes de ser lido, mas que ainda assim é publicado, por preguiça do autor em procurar outro tema. É uma crónica arriscada. Toda a informação que está viçosa às 15 horas de segunda-feira (a hora a que escrevo isto), pode tresandar de podre às 9 horas de terça-feira. É como escolher hoje na lota o peixe fresco que se vai comer depois de amanhã. Desta feita, pretendo discorrer sobre o iminente conflito entre a Rússia e a Ucrânia. Iminente, lá está, à hora a que escrevo isto. Quando o leitor me estiver a ler, é possível que a guerra já tenha começado. E acabado, se os russos tiverem optado por entrar mesmo à bruta.

O truque é debruçar-me sobre uma parte da questão que, independentemente do que possa ocorrer, se mantenha sempre igual. Neste caso, a posição do PCP. Sempre que há a Rússia ao barulho, sabemos que o PCP vai estar firme do lado dos oprimidos. É certinho, isso nunca muda. O que muda, quando muito, é a definição de “oprimido” no dicionário.

Por uma vez, achei que seria injusto (já para não dizer imaturo) fazer a habitual caricatura zombeteira das posições do PCP, mesmo sem as conhecer. Resolvi assim ler o Avante! e, com conhecimento de causa, só então fazer a habitual caricatura zombeteira. Acedi ao site da quase-centenária publicação e fui apanhado de surpresa pelo que li. (Aqui está uma frase que nunca antes tinha sido escrita sobre este, digamos, jornal). A surpresa deve-se ao facto de o órgão de comunicação com que o Partido guia o Povo no caminho para a Revolução que abolirá as classes e a propriedade e criará um mundo igualitário e de partilha, ser pago. Exacto. O Avante! paga-se. Se já não serve para juntar as massas, pelo menos serve para juntar massa.

O panfleto que, durante a ditadura, era impresso em tipografias secretas e distribuído clandestinamente por corajosos militantes, que era lido, escondido e passado de mão em mão, é agora uma newsletter que recorre a ferramentas do marketing digital para angariar assinaturas. A única forma de a sua leitura ser subversiva é se for feita em frente à sede de uma empresa do Grande Capital, servindo-se do seu WiFi sem autorização.

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Adquiri então um exemplar do Avante! Aceitei as cookies todas e escolhi a forma de pagamento (por respeito, entre transferência bancária, multibanco, Mbway, cartão de crédito e Paypal, optei pela que recorre à multinacional menos diabólica). Apesar da aparência normal do site, não me senti muito bem em ceder a minha morada ao Partido Comunista Português, de maneira que preenchi os dados da factura com “Av. Estados Unidos da América, 1, 1º direito, 1989 Berlim”. Normalmente, peço para não receber e-mails, mas desta vez permiti que usassem os meus dados para me enviarem novidades. Não virá daí grande mal ao mundo. Trata-se do Partido Comunista, não há novidades.

Correu tudo bem, tirando um problema que tive com o CAPTCHA, que queria que eu provasse que não era um robot identificando todas as imagens com automóveis, mas depois só mostrava imagens de pessoas a andar pé. Acabei por seleccionar uma em que aparecia uma carroça e aquilo lá avançou. Fora isso – e o facto de o mail de confirmação ter ido parar directamente para o junk mail da história – foi uma óptima experiência. Recebi o Avante! em PDF e já posso falar, com propriedade, sobre a posição do PCP em relação à Rússia. Não sei o nome, mas é das mais conhecidas do Kamasutra.

Alguns destaques: “A obscena campanha provocatória do imperialismo contra a Federação Russa intensificou-se continuamente nas últimas semanas.[…] Tais actos não só afrontam o direito internacional e a Carta da ONU, como não favorecem o processo negocial em torno das importantes propostas apresentadas por Moscovo sobre questões substanciais da segurança europeia, no essencial já rejeitadas pelos EUA e a NATO.” Mais: “A febril escalada contra a Rússia […] volta a trazer para o primeiro plano da arena internacional a velha política da força e criação de zonas de influência. São os EUA e a NATO que cinicamente apresentam como uma ameaça exercícios militares que a Rússia realiza no seu próprio território, quando são eles que desenvolvem sistematicamente exercícios militares a milhares de quilómetros das suas fronteiras e levam a cabo constantes acções de pressão, de ingerência e de agressão contra países soberanos.” Só para concluir: “O PCP apela ao desenvolvimento da luta contra a escalada de confrontação, as agressões e as ingerências do imperialismo, contra o alargamento da NATO e pela sua dissolução, contra a militarização da União Europeia, pela paz e o desarmamento.

No fundo, talvez tenha sido tempo mal gasto. Não precisava de ler o Avante! desta semana para saber que o PCP condena a política das zonas de influência ao mesmo tempo que aplaude a defesa que a Rússia faz da sua zona de influência; rejeita a ingerência da NATO na Rússia ao mesmo tempo que apoia a ingerência da Rússia na Ucrânia; abomina o imperialismo Ocidental ao mesmo tempo que aceita o da Rússia; recusa exercícios militares da NATO nos países da NATO mas aprova exercícios militares da Rússia na Bielorrússia. Tudo isto enquanto gaba Putin como paladino da paz.

Eu percebo a preocupação de Putin. Aliás, sou igualzinho. Se quisessem instalar uma ETAR no meu bairro, também refilava como ele refila por quererem instalar uma democracia mesmo ao lado da Rússia. É desagradável. Eu sei que a ETAR é necessária, mas ponham-na noutro sítio. Putin sente o mesmo em relação à democracia: façam-na longe, para o cheiro não se entranhar no povo dele. O PCP, como sempre, concorda.

Talvez alguém devesse dizer ao PCP que, apesar de ser imperialista como os comunistas russos, intimidar os vizinhos como os comunistas russos, pouco interessado na prosperidade do seu povo como os comunistas russos, o Putin não é comunista russo. Começo a desconfiar que, para o PCP, o comunismo era só uma desculpa para apoiar déspotas.

A nostalgia de Putin pela União Soviética só tem par na saudade que o PCP sente desses tempos gloriosos. Saudade que, apesar de tudo, ainda vai sendo mitigada através das viagens que organiza e anuncia no Avante!, como descobri no exemplar que comprei. Por exemplo, em Maio prepara-se uma excursão a Leninegrado e, em Novembro, a Estalinegrado. Note-se que Leninegrado não se chama assim desde 1991 e Estalinegrado desde 1961. Apesar disso, como aqueles velhos caturras que insistem em chamar Ponte Salazar à Ponte 25 de Abril, o PCP continua a honrar os grandes líderes soviéticos, resistindo à vontade dos traidores imperialistas que agora chamam São Petersburgo e Volgogrado às cidades onde vivem.

Admito que, neste conflito, tenho dificuldade em distinguir as notícias verdadeiras da propaganda. Quem tem razão? Quem deseja a guerra? Os russos ou os ucranianos? Vou optar pelo lado que não é defendido pelo Partido que respeita tanto os factos que ainda usa, por teimosia ideológica, a toponímia do século passado. E Portugal (ou, como se dirá na Soeiro Pereira Gomes, o Condado Portucalense) devia fazer o mesmo. É uma convicção que vale para qualquer hora, não apenas para a hora a que escrevo isto.