Façamos um pequeno exercício de faz de conta. Faz de conta que na segunda-feira, dia 17 de Abril, nos era entregue apenas o Programa de Estabilidade, sem qualquer mensagem, em vez de assistirmos a uma conferência de imprensa de manhã com o ministro das Finanças e outra à tarde com o primeiro-ministro e a ministra do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social.

O que teríamos visto era um crescimento meia décima superior ao previsto em Setembro/Outubro, altura da elaboração do Orçamento (de 1,3% para 1,8%); um défice público meia décima mais baixo (de 0,9% para 0,4% do PIB) ; a inflação acima do estimado também nessa altura (5,1% em vez de 4%) e o desemprego também mais elevado. Sem qualquer anúncio adicional veríamos certamente toda a oposição a criticar a redução do défice – com a direita mais cautelosa do que a esquerda –, enquanto as famílias portuguesas enfrentam dificuldades devido à perda de poder de compra. Há mais crescimento e menos défice e nem assim o Governo é mais generoso com os portugueses, seja por via de apoios ou por redução de impostos, diriam.

Com o anúncio do aumento intercalar das pensões, a subida da inflação, a redução do défice público e de forma ainda mais acentuada da dívida pública, o maior crescimento este ano mas um futuro de crescimentos medíocres – tudo isto deixou de nos chamar a atenção. Repare-se que quando comparamos o Programa de Estabilidade deste ano com o de 22-26 temos sempre crescimentos mais lentos no futuro. Vamos ter definitivamente três décadas perdidas no século XXI, apesar de o Governo se satisfazer com crescimentos acima da média, sem olhar para o que se está a passar com quem começou mais pobre do que nós e nos começa a ultrapassar.

O Governo tem aliás seguido um padrão. Para disfarçar o sucesso das contas públicas que, apesar do orgulho que diz ter lhe causa problemas à esquerda, tem lançado medidas. Em Março, quando o INE anunciou que afinal o défice público de 2022 tinha ficado em 0,4% do PIB, caindo dos 2,9% em 2022, o Governo anunciou um conjunto de medidas, como os 30 euros mensais para as famílias mais carenciadas e 15 euros por criança. Mais de um mês antes, tinha anunciado o programa “Mais habitação” que, descontando as medidas controversas, contou com o apoio às rendas e a bonificação dos juros do crédito à habitação.

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Estamos em geral perante iniciativas de política e não políticas. A ausência de uma estratégia é nomeadamente exposta pelo facto de as medidas se revelarem mal pensadas sempre que o Governo tenta ir mais longe e não ficar pelo “dar dinheiro às pessoas”. Esta falha foi especialmente notória nas medidas para a habitação, em que a ministra que está com esta responsabilidade da Habitação desde Setembro de 2020 – primeiro como secretária de Estado – apresentou um conjunto de iniciativas que teve o condão de desagradar a quase todos os interessados no sector. E algumas delas integram até o risco de terem o efeito oposto ao que se pretende, como é a tentativa de aumentar a oferta de habitação.

O mais recente caso da prioridade à política, esquecendo as políticas, correndo até o risco de gerar desconfiança, é a estratégia que o Governo seguiu nas pensões. Vale a pena fazer uma cronologia rápida.

Em Setembro do ano passado o Governo anunciou que ia dividir o aumento das pensões, que resultava da aplicação da lei, em duas parcelas: metade do aumento seria pago de uma só vez e a outra metade corresponderia à atualização da pensão. Não cumpria assim a legislação que estabelece as regras de atualização das pensões até 5765 euros. Percebeu-se de imediato que tal decisão ia prejudicar os pensionistas a partir de 2024, já que iriam partir para os aumentos com uma base mais baixa.

Para se defender o Governo argumentou com a existência de riscos para a sustentabilidade da segurança social. Se aplicasse a fórmula, disse, a segurança social passava a ter saldos negativos a partir de finais desta década de 20. E enviou uns papéis para o Parlamento que mereceram óbvias críticas, uma vez que só atualizava a despesa e nada fazia quanto à receita. Claro que esse estudo não era para levar a sério e nem se percebe porque o fez dessa maneira.

No fim do ano, quando se verificou que a inflação foi afinal superior ao previsto, o Governo ainda fez uma correcção ao cálculo que dava metade do aumento da pensão a que se tinha direito, no quadro da lei.

E há apenas uma semana, no Parlamento, o ministro das Finanças continuava a garantir que o Governo “tinha cumprido escrupulosamente” a lei da fórmula das pensões para 2023, admitindo compensar os reformados em 2024, mas a falar de uma nova fórmula de cálculo.

De repente tudo mudou. E dia 17 de Abril o Governo anunciou uma actualização intercalar das pensões abaixo dos 5765 euros, de tal maneira que a partir do segundo semestre os pensionistas vão receber aquilo que a lei lhes dava como direito. E, pasme-se, a segurança social de Setembro de 2022 para Abril de 2023 passou a estar muito mais sustentável e os saldos, que iam ser negativos já no fim desta década, só correm esse risco em 2033, de acordo com a ministra do Trabalho.

Claro que é a política, claro que seja qual for o partido que queira ganhar eleições tem de agradar a dois grupos: aos funcionários públicos e aos pensionistas. Mas o que se passou desde Setembro, que culminou com este aumento, é muito difícil de compreender sem ser colocando a hipótese de que o Governo estava muito preocupado com as perspetivas económicas e inflacionistas em Setembro.

Mas com toda esta história, em que em sete meses o sistema de pensões passa de perigosamente insustentável para confortavelmente sustentável, só pode criar desconfiança. Até porque mostra, no mínimo, como é frágil essa sustentabilidade, como pode desaparecer de um momento para o outro. Mas sobre assuntos complicados como esse, de reformar as pensões, o Governo não quer ouvir falar e até já quer que nos esqueçamos do grupo que está a estudar o assunto.

A subida dos preços e o turismo, muito intensivo em mão de obra, têm sido a nossa conjuntural salvação e, especialmente, do Governo. A inflação, esperemos, vai desaparecer e que pelo menos sirva para nos retirar o peso da dívida. O turismo, nunca sabemos quando e se alguma vez Portugal deixará de estar na moda. O certo é que também nesta segunda-feira ficámos a saber, mais uma vez, que continuaremos a navegar no que a conjuntura nos vai dando. O futuro, logo se vê.