Antepropósito: podia ser a preguiça, com este calor. Ou o chamamento do verão, mais os seus ex-libris, imutáveis ex-libris que fazem dele a “única “estação que era a de Ruy Belo e é a minha: o alvorecer da manhã, a certeza do mar, o desejo do ócio, a saudade do fare niente, o cheiro acre da terra quente, as rosas do jardim que inexplicavelmente resistem a tudo. Os braços nus, o linho, as sandálias. As noites que nunca deixamos que cheguem ao fim.

Sim podia ser tudo isto que me levou hoje a não produzir prosa. Mas não. Troquei voluntariamente um escrito novo pela reedição de partes de uma crónica já antiga motivada pelo espanto de uma extraordinária descoberta: a imaculada “actualidade” dessas linhas aqui estampadas há décadas. Podia tê-las redigido ontem! Falo de quê, afinal? Falo da outra face da “única estação”, evoco o que para abreviar se chama expeditamente um “verão em família”. O qual, como devem já ter reparado, mais se aparenta muitas vezes a um levantamento de rancho, uma alteração da ordem estabelecida, um circo, uma estação desconhecida. E depois de repente descobrimos que é na dobra de tudo isto que se esconde um dom e tão grande que exige um automático “hossana”. Faz-se aliás cada vez menos caso – terá caído em desuso? – da expressão “família unida” mas eu traduzo: é uma tribo que gosta de si, se gosta entre si e quer continuar a gostar.

Continuemos portanto por este Julho fora, balanceando entre o dom e as consequências do dom. Seguem abaixo, como as vou vivendo. E como as vivi – e escrevi – há anos. Alterei-as pouco. Não ganharam uma ruga.

Haverá melhor sinal de vida?

Crónica reeditada

1 Primeiro foi o caracol. Era muito grande e pesava. Não foi fácil. Quatro braços para o arrastar para porto mais seguro que o jardim, com a casca de cerâmica luzindo ao sol de Julho, tal como pela primeira vez, há anos atrás, olhei um igual, em casa de José Pacheco Pereira, e foi amor à primeira vista (com o caracol).

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Seguiu-se a retirada da águia de ferro (comprada nos idos de oitenta a um escultor belga num inextricável misto de paixão pelo Benfica e amor à arte) e depois levou-se a grande cigarra que nunca conseguiu ter formiga por companhia como aqui se teria ambicionado, porque o escultor (da cigarra) não era afeiçoado a formigas. Com este “habitat sobre relva” devidamente removido, puderam montar-se as balizas, anunciadoras da iminente aterragem dos netos nesta freguesia oestina. E passar ao acto 2.

Fazendo camas e outras camas que saem por de baixo dessas; trazendo a cama de grades da garagem para a prodigiosa Sofia Helena, neta mais nova que mora em Viena, está a chegar a Óbidos e vai ter um irmão em Outubro; instalando a rede de vólei no tanque de rega (em boa hora nos idos de oitenta “transformado” em piscina por mor dos bisavós dos netos); provendo a dispensa e enchendo o frigorífico (actos sempre falhados porque ambos, por definição, logo “desenchem”.) E, claro, respirando fundo. Muito fundo, antes do mergulho no caos que é o outro nome das férias da tribo. Que por sua vez é o outro nome de um dom.

Ora apetecido ora desapetecido, o caos porém anunciava-se: virá para ficar.

2 A casa encher-se-á de filhos, netos, cônjuges, namoradas, sobrinhos, parentes e sobretudo os omnipresentes “amigos”, nacionais e estrangeiros, de uns e outros. Sempre sem data fixa de chegada nem de partida, o que desnorteia qualquer pequena, média ou grande dona de casa. Sempre famintos e sempre largando atrás de si um caudal de toalhas de praia, havaianas, mochilas, telemóveis, chaves, iPads, brinquedos avulsos, bóias, livros, revistas, jornais, jogos. E outros díspares objectos. por vezes também misteriosamente abandonados para todo o sempre, no sitio onde pela primeira vez foram largados (alguns ainda lá jazem até hoje).

Fazem-se e desfazem-se camas a alta velocidade, avança-se com 32 graus centígrados para lavandarias superlotadas quando a máquina de lavar se cansa de vez de engolir tanta roupa; abrem-se e fecham-se estonteantemente frigoríficos, há biberons em lugares insólitos, descobrem-se legos nas banheiras e os depósitos dos nossos carros -nossos, do patriarca e da matriarca desta feira – estão normalmente sempre vazios.

Enfim, arruma-se, corre-se, organiza-se (ingloriamente) o caos. Mas vive-se.

Com líquida fluidez, o dinheiro some-se dos bolsos enquanto o tempo (quem diria, em “férias”?…) está sempre em contagem decrescente para ir ao super, à praça, à farmácia, ao parque, aos jornais, ao infrequentável aeroporto levar ou trazer os membros da tribo que chegam finalmente a pátria, vindos dos países onde labutam.

Curiosamente, vive-se em estado de “emoção à flor da pele” e, por razões certamente sazonais, eleva-se com espantosa facilidade o tom de voz: de repente, é como se o grito substituísse o verbo, e a gritaria equivalesse a uma amável conversa familiar. Coisas do ócio, talvez.

É também um tempo onde, mal “abrem as férias”, eu me chamo – ou melhor chamam-me — “alguém”: “Alguém pode ir a Lisboa buscar o Vasco que chega de Viena?”; “Alguém traz as meloas da praça?”; “Alguém pode levar-me ao ténis? “

3 Por aí fora, por aí fora, que é verão, estamos em férias, temos mar e campo. E celebra-se acima de tudo a família, que é coisa séria e prioridade forte. Mas que isso não nos iluda sobre a efectiva alteração da ordem que passou a vigorar nas nossas casas, nem nos faça achar normais os altíssimos decibéis da vozeraria que incessantemente vêm da mesa; dos mergulhos; das (recalcitrantes) idas para o banho dos pequenos, das acaloradas discussões políticas dos grandes.

Acredito que, em maior ou menor grau, muitíssimas mulheres vivem e convivem nas suas férias (?) com este — como dizer? — singular “estado de sítio” e só por essa espécie de “universalidade” o descrevo: quase como uma homenagem, certamente com alta solidariedade.

4 Manda porém a seriedade intelectual (e qualquer das outras seriedades, de resto) que percebamos o poderoso significado de um clã familiar unido, como elemento aglutinador de tudo. Entrevendo, antecipando, esperando que ele seja o melhor ponto de partida para como outrora os filhos e hoje os netos poderem levantar voo para a vida. O melhor dos voos.