Os portugueses votaram “liberdade” palavra do ano em 2024. Bem sei que é o tipo de pequena notícia que não abre telejornais, antes os fecha, à laia de curiosidade do dia. Bem sei que foi por uma unha negra que ganhou, com 22%, a “conflitos” (21,3%) e “imigração” (21,2%), e que depois vieram coisas de âmbito maior ou mais pequenino como “inclusão”, “INEM, “fogos”, “polícia”, “jovem”, “transportes” e “auricular”. Bem sei que há muitas votações do género e que, tipicamente, reflectem mais sintomas circunstanciais do que sentimentos profundos de um país. Mas uma coisa é escolher “vuvuzela” como palavra do ano de 2010, “austeridade” em 2011, “entroikado” em 2012, ou mesmo “corrupção” em 2014, ano, por exemplo, do início dos processos BES e Marquês. Nesses momentos, mais do que a palavra, foi como se a Porto Editora, responsável pela iniciativa, tivesse apenas auscultado “o desabafo do ano”. O lamento do ano. Médico perguntando ao doente de que é que se queixa. “Oh, doutor, é esta troika que não me deixa dormir…”

Outras, aqui recordadas anteontem pela Inês Capucho, como “guerra” em 2022, “vacina”, em 2021, ou mesmo a comovente “saudade” de 2020, não andarão longe da mesma natureza emocional, retrato do instante. A escolha deste ano, não. A escolha deste ano, em que comemorámos os 50 anos do 25 de Abril e fomos tantas vezes a eleições, em que tanto se falou de populismos e ameaças fascistas, distopias tecnológicas e outras assombrações, umas vindas do passado, outras do futuro, não foi explicitamente acerca de nenhuma destas coisas e, ao mesmo tempo, foi acerca de todas estas coisas. E mostra que talvez tenhamos levado mais a sério as comemorações do cinquentenário da democracia do que, por vezes, nos damos o crédito.

Sim, bem sei que foi à justa e que é uma mera competição online. Ainda assim, votaram 50 mil pessoas, muito mais do que qualquer sondagem com que enchemos primeiras páginas e abrimos, com essas sim, os telejornais. Mas deixem-me celebrar por um bocadinho, orgulhar um instante de nós todos, que isto não é assim tão habitual.

A verdade é que “liberdade” nem sempre nos pareceu uma palavra assim tão cara. “Liberdade” é a negação de muitos dos tiques da lusitanidade. Onde há liberdade, acima de tudo, não há medo, não há queixume, não há vitimização, não há inveja nem admiração provinciana, não há bota-abaixismo fácil nem esperas por Dom Sebastião. Um povo escolher “liberdade” como palavra mais importante do mundo torna-o menos vulnerável a deixar abrir a porta a novos cavalos de Tróia da ditadura, líderes autoritários que prometam pôr tudo na ordem, mas também centralistas e estatistas que se oferecem a um suposto martírio num serviço público do cimo do qual, na realidade, tudo controlam e tudo fazem depender deles. Um povo que escolhe “liberdade” como palavra do ano não se esqueceu do passado nem vai nos cantos de sereia dos que dizem falar por ele, povo. Um povo que escolhe “liberdade”, acima de “conflitos” ou “imigração”, é decerto geneticamente mais próximo dos que se metiam nas caravelas do que do velho do Restelo, que ali ficou sentado a palrar e tanto filho bastardo deixou por esse país tristonho e ressentido dos últimos 500 anos.

Hoje, que temos tanta liberdade que a damos por adquirida. Hoje, que temos tanta liberdade que a cedemos de forma demasiado fácil, à primeira app disto ou daquilo que nos peça acesso aos nossos dados, à nossa localização, à dos nossos, aos nossos gostos e medos. Hoje, que podemos escolher olhar para o que quisermos, mas as imagens nos ecrãs nos controlam muito mais do que quando, todos os dias do mundo, olhávamos o mesmo quadro no centro da sala e víamos coisas novas, materiais ou em pensamento. Hoje, quando defendemos a liberdade de todas as culturas, mas parecemos envergonhados da nossa. Hoje, que em nome da liberdade de alguns, se queira calar a de todos. Hoje, em que, às vezes, se quer à força uma igualdade que dobre as liberdades até as partir, e outras, confunde liberdade com mero dinheiro e seus caprichos. Hoje, mais do que nunca, que 50 mil portugueses digam que “liberdade” é a palavra do ano, não é uma curiosidade; é a notícia mais bonita do dia. Porque liberdade tem de ser a palavra do ano todos os anos. Sobretudo naqueles em que nem precisamos de a dizer.

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