No primeiro álbum lançado em liberdade, Sérgio Godinho cantou que “só há liberdade a sério quando houver [….] a paz, o pão, habitação, saúde, educação”. Desde Maio de 1974, o país conheceu transformações tremendas, a começar pelas liberdades políticas e de expressão que são, em minha opinião, as mais importantes. O momento que atravessemos é, contudo, um dos politicamente mais delicado desde o início da democracia. Em primeiro lugar, provavelmente nunca como agora houve uma maior disjunção entre as expectativas da população e aquilo que o país tem para lhes oferecer. É evidente que o país já foi muito mais pobre. Todavia, os jovens de hoje comparam Portugal com a Europa rica. O resultado não é bonito. Em segundo lugar, tal como todos os anteriores, o regime deixou-se conduzir a um beco sem saída. As elites, e, penso, em grande medida, o povo, estão perfeitamente conscientes que é difícil manter o statu quo por muito mais tempo. Uns por falta de ideias e de talento, outros pelo medo atávico à mudança, fazem tudo o que podem para reformar o país.
Em 2015, António Costa chegou ao poder com base numa fantasia: a austeridade que o país conhecera nos anos anteriores fora, em boa parte, uma escolha da direita neoliberal que pretendia, acima de tudo, empobrecer o país. O equilíbrio em que o governo de Costa assentou baseava-se numa premissa: todas as variáveis exógenas tinham de correr de forma quase perfeita para ocultar o trilema político que o governo enfrentava. Qual é esse trilema?
Imaginem um triângulo em que cada ponta representa um objectivo político e económico que, idealmente, deve ser cumprido. Por constrangimentos do mundo real que seriam redundantes explicar aqui, apenas dois desses objectivos podem ser cumpridos em simultâneo. Esses três objectivos são: (1) cumprimento estrito das regras orçamentais Europeias; (2) entrega de benefícios específicos a classes sociais e profissionais (por exemplo, funcionários públicos e pensionistas); (3) investimento público para manter os serviços públicos de saúde, educação, habitação a entregar bens públicos a toda a população, independentemente em quem tenha votado e do seu valor para a coligação eleitoral. A resposta a António Costa a este trilema foi simples. A bancarrota de 2011 e o consulado de Passos Coelho mudaram para sempre o ethos da política portuguesa. Mesmo que seja vilipendiado pela língua de pau do governo e das elites de esquerda, a cultura política defendida pelo governo de Passos Coelho quanto ao défice e à dívida venceu e tornou-se dominante. Costa nunca arriscaria o incumprimento do objectivo número um. A Europa – que mantem o regime e as elites rentistas ligadas à máquina – nunca mais poderia apanhar Portugal em incumprimento.
Restava apenas escolher qual a ponta do triângulo que seria incumprida. António Costa não hesitou porque percebeu que existem grupos sociais e profissionais cujo papel na formação de coligações eleitorais ganhadoras é demasiado importante para correr o risco de alinear. Assim, desde 2016, primeiro com a sabedoria de Centeno e, mais tarde, Leão e Medina, Costa foi cortando aos poucos o investimento público, atingindo mínimos históricos. Tal como mostra sabiamente Miguel Faria e Castro, economista na Reserva Federal Norte-Americana de St. Louis, o Stock de Capital Público caiu para níveis perigosamente baixos. Para manter a ilusão de que a austeridade acabou, António Costa deixou os serviços públicos ir ao osso, levando-os a um estado de degradação que abre os telejornais diariamente.
E assim chegamos a 2023. Apesar da pandemia ter sido uma prova difícil de superar, as suas consequências foram uma bênção para a elite portuguesa. O dinheiro injectado pela Europa via PRR permitiu dar um novo fôlego a uma economia viciada em fundos Europeus e que, como argumentam economistas como Nuno Palma, podem estar a contribuir para uma maldição dos recursos da economia portuguesa. Todavia, a inflação veio expor as muitas fragilidades da economia portuguesa. No fundo, é a velha e batida metáfora da praia: quando a maré baixa é que se vê quem está a nadar nu.
Em primeiro lugar, ao contrário da maioria das suas congéneres europeias, a classe média portuguesa é fraca e recebe salários baixos. Aquela que recebe salários supostamente altos, vive asfixiada por impostos que tem de pagar para manter o país a funcionar. Uma subida de preços galopante, especialmente nos créditos bancários, colocou à vista o frágil equilíbrio financeiro da maioria das famílias. Em segundo lugar, a crise da habitação mostrou a total impreparação do governo e das políticas públicas. Os últimos oito anos foram absolutamente perdidos. Como assinala a Iniciativa Liberal, desde 2011, houve uma diminuição brutal na construção de novas casas. Se nos anos de aflição da troika isto era menor, nos últimos anos, Costa foi assistindo a um aquecimento do mercado do arrendamento sem fazer rigorosamente nada.
Obviamente que em matéria de habitação, no caso de Lisboa, aquele que conheço melhor, o turismo tem implicações duras. No entanto, é evidente que o governo não tomará medidas drásticas, e que provavelmente até seriam necessárias, porque o turismo tornou-se essencial para a sobrevivência de grande parte do emprego criado em Portugal. Se metesse um travão a fundo no turismo, para com isso mitigar parcialmente o problema da habitação, o governo teria, depois, problemas na balança de exportações e no emprego.
O problema de António Costa é simples e vem nos livros. Não se pode enganar toda a gente durante todo o tempo. A dada altura, a ausência de reformas, de um plano, de uma ideia para o país, por mais pequena que seja, impõe custos grandes. O diabo chegou sobre a forma de uma crise inflacionária. Não há vacas a voar porque, alas, elas não existem na vida real.