Em retrospectiva, o chamado “Russiagate”, que reapareceu em cena graças à sentença do Tribunal Administrativo de Lisboa, poderá ter contribuído, e bastante, para o afastamento de Fernando Medina do Município, ao ser derrotado nas últimas autárquicas por Carlos Moedas, contrariando todas as sondagens à época.
As eleições, que pareciam uma mera formalidade e um “passeio no parque” para Medina, transformaram-se, então, num pesadelo, do qual nunca chegou a libertar-se, apesar da pasta das Finanças que António Costa lhe confiou, em jeito de compensação, para continuar as cativações a sorrelfa, segundo os ensinamentos de Mário Centeno e em nome das “contas certas”.
Em contrapartida, Carlos Moedas, ex-comissário europeu e ex-administrador executivo da Gulbenkian, não parecia fadado para fazer frente e ensombrar o “todo poderoso” Medina, acolitado por Manuel Salgado, na conversão da cidade ao turismo massificado.
Porém, quem o leia hoje Salgado fica com a errada ideia de que, afinal, o arquitecto é estranho e até muito crítico do desvario de novos hotéis, semeados a esmo pela cidade… Amnésias.
O desfecho desta história é conhecido: Moedas atravessou-se, sem cerimónia, nos destinos de Medina, enquanto as esquerdas municipais “juraram vingança” e empenharam-se, esforçadamente, em montar um “cordão sanitário”, para impedir o “intruso” de apresentar obra feita.
O pior é que Moedas saiu-lhes um “osso duro de roer” e, mais determinado do que poderiam prever, ousou lançar, inclusive, projectos que adormeciam há muito nas gavetas — como o Plano de Drenagem para evitar as inundações em Lisboa —, e agarrou a oportunidade das Jornadas da Juventude e da vinda do Papa para testar as suas aptidões de empreendedor.
E saiu-se bem, não obstante a “concorrência” de Américo Aguiar, o novíssimo cardeal, que após servir, discretamente, a gerência da Rádio Renascença, sentiu-se vocacionado para outros voos, desde presidir à Fundação da Jornada Mundial da Juventude, até encabeçar a lista da candidatura de Pinto da Costa no FC Porto (um fiasco…), ou ser “comentador” residente no canal de televisão “Now”. Uma polivalência invejável do bispo de Setúbal. E uma originalidade sacerdotal…
Claro que o êxito das Jornadas mais atiçou as azias das oposições no município, e, para agravar as coisas, a recente decisão do Tribunal Administrativo de Lisboa, ao condenar a autarquia a uma coima superior a um milhão de euros, “aterrou” no meio dos planos das esquerdas, já envolvidas num novo frentismo para recuperar o controlo pleno da Câmara, onde sobram os bons lugares para amigos e compadres.
Reconheça-se que Medina anda em maré de azar. Primeiro, a sua mudança para o Terreiro do Paço foi efémera e não lhe conferiu o lastro desejado para disputar a liderança do PS e suceder a Costa. Depois, foi constituído arguido, no processo “Tutti frutti“, ainda que os pressupostos sejam discutíveis.
Por fim, o “Russiagate” caiu-lhe novamente “ao colo”, com Moedas, assertivo, a lamentar “esta pesada herança deixada pelo anterior executivo socialista e o seu impacto muito relevante”, prometendo, ainda, defender o interesse dos lisboetas, e estudar a possibilidade de recorrer da dura coima.
Claro que Moedas fará “render a história” o mais que puder e seria ingénuo se não o fizesse, perante a forma como as esquerdas o têm destratado.
De facto, este sarilho em que se meteu Medina, não afectou apenas o próprio e as suas ambições, mas muito boa gente do anterior executivo camarário e dos serviços, que não poderão invocar desconhecimento das manigâncias e dos procedimentos levianos e deploráveis seguidos na autarquia, quando se tratou de habilitar a embaixada da Rússia e o Ministério dos Estrangeiros, em Moscovo, com os dados de manifestantes russos e ucranianos anti-Putin.
A notícia foi um escândalo à época, que, além de comprometer as aspirações de Medina à reeleição na Câmara de Lisboa, manchou a autarquia e alguns serviços, informadores confessos sobre os activistas, em violação da sua privacidade e segurança.
A sentença do tribunal, cujos juízes consideraram, peremptoriamente, que o Município “agiu de forma livre, deliberada e consciente“ mais penaliza Medina, que, nessa altura, tentou passar “nos intervalos da chuva” como se não fosse nada com ele.
Doravante, bastará a Moedas invocar esta condenação formal, e os factos dados como provados, para por os socialistas e os seus parceiros das esquerdas à defesa.
Depois, o frentismo complicou-se, também, com as posições oficiais do PCP, tanto perante a invasão da Ucrânia, cobrindo a “operação militar especial” de Putin, que o partido nunca condenou, como face à enorme fraude eleitoral na Venezuela, ao felicitar Maduro por uma vitória que lhe fugiu das mãos.
A ortodoxia militante do PCP, a sua fraca liderança e as ditaduras que continuam a fascinar os seus dirigentes, estão a liquidar o partido.
Quando isso acontecer, o PCP poderá orgulhar-se, contudo, de ter resistido muito mais do que os seus congéneres e de ter sido um dos derradeiros partidos comunistas europeus a sair de palco.
Falta pouco, como se tem visto nas últimas consultas eleitorais, nas quais os comunistas perderam terreno de uma forma sistemática, até nos seus antigos bastiões, ficando reduzidos a quase metade do grupo parlamentar, com a novidade de não terem conseguido eleger, nas últimas legislativas, nenhum deputado pelo Alentejo. Um revés significativo.
Nas Europeias não tiveram melhor sorte e elegeram um único deputado, à tangente, quando tinham dois.
Cauteloso por norma, até Luís Marques Mendes não se absteve de associar o PCP a “um processo de loucura e suicídio político “, ao apoiar Nicolás Maduro, que se gaba de encher as prisões com milhares de opositores, a quem chama terroristas, só por defenderem a liberdade e manifestarem-se contra uma ditadura em queda livre.
Convirá recordar, ainda, o impressionante êxodo superior a sete milhões de venezuelanos, espalhados pela América Latina, tendo à cabeça como países de acolhimento, a Colômbia, o Peru e o Brasil. Fugiram de um regime autocrático, que finge organizar eleições para, em seguida, surripiar e manipular os resultados, além de perseguir os adversários políticos.
A decadência do PCP, que o Bloco de Esquerda acompanha de perto, está a baralhar as contas do frentismo em Lisboa, contra uma possível recandidatura de Moedas nas próximas autárquicas, sobre a qual este mantém uma prudente e avisada reserva.
A Europa não está a virar à esquerda, com raras excepções, e a lista de devoções do PCP — desde a Venezuela, a Cuba, à Nicarágua, à Coreia do Norte ou à Rússia de Putin – não se recomenda.
A crónica de Moedas como presidente do Município tem oscilado entre vencer o cerco das oposições, e dar andamento a algumas urgências da cidade, em particular, o Plano Geral de Drenagem de Lisboa, já com “barbas”, debatido e adiado ao longo de mais de duas décadas, conhecendo seis presidentes de Câmara nesse acidentado percurso
Algo bem revelador de que não é somente em relação ao novo aeroporto – que um dia há de servir a capital -, que se acumulam os estudos, os interesses cruzados, os ziguezagues, as demoras e as hesitações inexplicáveis.
O Plano de Drenagem, assegurados os necessários e vultuosos financiamentos, avançou, finalmente, não sem antes ter havido o “empurrão” das inundações, registadas em dezembro de 2022, com o presidente a prometer o arranque da obra, considerando que, se a empreitada já estivesse feita, as situações de cheias não teriam ocorrido.
Quanto estiver concluído, talvez em 2025, o Plano de Drenagem será, sem dúvida, uma das “imagens de marca” do mandato de Moedas, juntamente com as Jornadas da Juventude, que trouxeram o Papa a Lisboa.
Com marcação cerrada, Moedas deu um passo ao lado e decidiu, entretanto, validar os ecos sobre o aumento da criminalidade em Lisboa, com “bolsas” localizadas em vários pontos da cidade, desde os bairros tradicionais, até às periferias urbanas, que crescem à margem da lei.
É uma criminalidade que assenta, sobretudo, na oferta e consumo de drogas, que se faz a céu aberto, sem que as polícias intervenham e lhes ponham cobro.
Lisboa já foi uma cidade bem mais segura, com policiamento de proximidade que, praticamente, desapareceu, trocando a vigilância a pé pelo aconchego das esquadras e das patrulhas motorizadas.
O fenómeno tende a agravar-se, até pelo desleixo e benevolência com que se encaram certos comportamentos de marginalidade social.
Nota-se um “encolher de ombros” permissivo, como se fosse uma fatalidade inevitável, quando, salvo poucas excepções, do que se trata não é de “arte urbana”, mas de vandalismo, que fica normalmente impune, incluindo monumentos, aqui, porém, com o “beneplácito” do activismo político.
À cautela, Moedas apelou ao reforço de efectivos — quer para a PSP, quer para a Policia Municipal —, em mora desde o governo anterior, a fim de melhorar a segurança da cidade.
O autarca pressiona agora Montenegro, esperançado em obter “mais polícia na rua”, lembrando que isso é uma competência do Estado e não do Município. E espera mais do governo.
O recado ficou dado e a criminalidade não goza férias. Resta apurar se e quando lhe darão ouvidos. Apesar de serem da mesma família política.
Durante mais de três décadas a capital sobreviveu à governação socialista. Convirá que Moedas seja capaz de restituir aos lisboetas o prazer de viver a sua cidade.
Nota em rodapé: Basta ler a entrevista ao Expresso do empresário Marco Galinha, para perceber o novo-riquismo chegado aos media, atraído pelo histórico de dois títulos de referência, o Diário de Notícias e o Jornal de Notícias, um moribundo e outro em dificuldades, e ambos desapossados das suas sedes históricas, em Lisboa e no Porto, decerto dois bons negócios para quem os promoveu.
Galinha confessa, aliás, na mesma entrevista, que “temos que nos concentrar naquilo que sabemos fazer bem e media não é a nossa área de negócio. Nós queremos é ganhar dinheiro e andar para a frente”. Uma tocante confissão.
Ora, há muito que se sabe que os media foram “chão que já deu uvas”, em particular, desde que “despacharam” os activos imobiliários de que dispunham. Nesse aspecto, Galinha chegou tarde a um mercado onde outros, antes dele, fizeram fortuna. Mas os seus planos não passavam apenas por aí.
Os media estão mal, sobretudo a Imprensa escrita, e sobram as interrogações e as incertezas quanto ao seu futuro, com empresas descapitalizadas, e altamente deficitárias, algumas dirigidas por arrivistas, ávidos de promoção social e com projectos de dinheiro fácil. Outras, por mecenas com as suas compensações.
Diz o povo que “quem não sabe é como quem não vê”. E a recente operação de compra pelo Estado de uma parcela da Lusa (45,71% da Global Media e da Páginas Civilizadas, passando a deter 95,86% do capital da agência noticiosa), quando já possuía a maioria do capital — negócio que o governo anterior preferiu adiar —, é um daqueles investimentos que contraria a lógica e o bom senso.
Galinha aparece, precisamente, como um dos beneficiários deste negócio. Tem razões para sorrir e sentir-se feliz, enquanto é uma ironia que seja um governo da AD a “nacionalizar” ainda mais a Lusa… Mistérios.
Nota em rodapé 2 – Ao que foi noticiado, sem desmentido, prescreveu o crime de falsificação de documento de que era acusado José Sócrates no processo da ‘Operação Marquês’, relacionado com o famoso apartamento adquirido numa zona luxuosa de Paris.
Outras prescrições estão no horizonte próximo, que, a confirmarem-se, serão um dramático fracasso para a Justiça e um prémio para a estratégia da defesa do ex-primeiro ministro.
Com recursos, adiamentos, incidentes processuais e estratagemas vários, começou a cair “o baralho” das acusações que envolviam Sócrates. O direito à indignação ausentou-se para parte incerta. Terminadas as férias judiciais se verá o que se segue. Mas teme-se o pior, perante o que já está à vista…