A mais recente fuga de informação do Pentágono – que inclui 38 documentos fotografados, datados, de acordo com uma investigação da ABC News, de finais do mês de Fevereiro e dos dias 1 e 2 de Março –, para além de conter informação privilegiada acerca de dados estatísticos, militares e de campo acerca da Guerra na Ucrânia, contém informação que diz respeito à opinião dos Serviços de Informação dos EUA e da Administração Biden sobre a atuação de António Guterres, secretário-geral das Nações Unidas, em relação à Guerra.
De acordo com o que vem nos documentos oficiais vazados em plataformas de comunicação associadas a videojogos e, em particular, num servidor de Discord cujo tema principal era, precisamente, a Guerra na Ucrânia, os Estados Unidos rastrearam comunicações privadas do secretário-geral da ONU. Apenas este facto deveria soar alarmes, porém, nem o próprio ficou surpreendido, já que um dos seus assessores, em resposta à BBC, afirmou que António Guterres “não estava surpreendido com o rastreamento das suas conversas privadas; no entanto, não deixa de ser surpreendente que, por incompetência ou maleficência, essas conversas sejam divulgadas em público com distorções.”
Mas, afinal, o que dizem os EUA em relação à informação privada que recolheram?
Bem, a Administração Biden acredita que Guterres tem sido soft na sua posição em defesa da Ucrânia, já que reuniu esforços para que a exportação do trigo e do milho não fosse nociva para a Rússia.
Acontece que a posição moderada de António Guterres, no que concerne à exportação de trigo e milho – nomeadamente pela rota do Mar Negro –, não advém de uma preocupação com a saúde financeira do país invasor, mas sim com a saúde das populações dos países em desenvolvimento, que seriam – e são – os mais afetados com a subida dos preços destes produtos.
Dados da União Europeia dizem-nos que 65% do trigo produzido na Ucrânia acaba por ser expedido para países em desenvolvimento (Somália, Iémen, Etiópia, apenas para mencionar alguns). Tal como disse o assessor de Guterres em resposta a estas fugas de informação e consequente politização das mesmas, a principal preocupação do secretário-geral era, de facto, mitigar os efeitos da subida dos preços nos países mais desprotegidos em termos económicos e sociais e manter o acesso a fertilizantes facilitado.
Esta opinião da Administração Biden é, indubitavelmente, utilizada pela manipulação política e objetificação argumentativa da Guerra na Ucrânia, que tanto Democratas como Republicanos perpetuam no atual debate interno acerca da política internacional dos EUA.
Os Democratas, por um lado, pretendem, em termos retóricos, apresentarem-se como os detentores dos meios de salvaguarda da democracia, aproveitando isto para continuar o embalo dos recorrentes ataques ao Estado de Direito americano por parte dos Republicanos ultraconservadores pertencentes à chamada ala “MAGA – Make America Great Again” do partido, nomeadamente através dos juízes conservadores do Supremo Tribunal. Por outro, os Republicanos, continuando a estratégia de política internacional de Trump e agora reformulada e pensada intelectualmente por Elbridge A. Colby, graduado por Harvard e Yale e antigo membro de Departamento de Defesa da Administração Trump, pretendem fazer da China o principal – e único – inimigo à hegemonia estadunidense no mercado internacional. Esta tese está a ser levada avante pelos principais meios de comunicação veiculadores da agenda mais extremista da direita americana: Fox News – principalmente pelas mãos de Tucker Carlson e Laura Ingraham – e contas de Twitter de alguns indivíduos apologistas da corrente comspiracionista, como Marjorie Taylor Greene, membro da Câmara dos Representantes.
Esta efervescência sentida do lado Republicano surge da proximidade das primárias do partido que ocorrem, diga-se de passagem, em ambiente incerto: Donald Trump foi formalmente acusado pela justiça americana – após uma investigação de 5 anos – por alegados subornos a Stormy Daniels, atriz pornográfica, por parte da equipa de campanha de Trump, de modo a que o caso entre ambos não fosse tornado público.
Segundo um estudo de Nathaniel Rakich, colaborador da plataforma de análise política FiveThirtyEight, existem três cenários possíveis que podem resultar da acusação formal a Trump: 1. Prejudica Trump politicamente (a ala mais conservadora que ainda considera votar em Ron DeSantis pode tomar a sua decisão com base nesta acusação); 2. Beneficia Trump (porque pode ganhar o caso e sai vitorioso e vitimizado); 3. Não vai importar na decisão dos eleitores (os eleitores já estão cansados de polémicas com Trump e acreditam que este caso não passa de mais um episódio).
Isto para dizer que ainda está tudo em aberto.
O que não está em aberto é a reputação de António Guterres. Desde o início da Guerra que o ex-primeiro-ministro português tem sido peremptório: a Rússia tem de sair de território ucraniano. É o único caminho para a paz.
É pena que os interesses internos das campanhas políticas democratas e republicanas tenham braço tão longo e tão poucos escrúpulos – até Guterres é objetificado na política americana.