1 A liberdade de consciência

Um dos tópicos mais relevantes de discussão filosófica na segunda metade do século XVII foi a questão da tolerância: após a cisão provocada pela Reforma e a multiplicação das seitas e confissões protestantes, a Europa assistiu a sucessivas guerras religiosas. O contexto exigia, como Artur Morão afirma, uma “resposta às aspirações de muitos espíritos europeus que, de vários pontos de vista, sentiam a necessidade da conciliação prática e social das pessoas, não obstante a divergência das suas opções doutrinais”.

Uma dessas respostas foi dada pelo filósofo inglês John Locke, enquanto se encontrava nos Países Baixos como refugiado político, num texto que seria publicado em 1689 sob anonimato. A “grande tradição ocidental da tolerância” já tinha sido iniciada com Nicolau de Cusa, Thomas More e Pico della Mirandola, e continuada por Pierre Bailey e Baruch Espinosa – mas será a Carta sobre a Tolerância, de Locke, a estabelecer os princípios fundamentais das sociedades liberais. De acordo com o filósofo inglês, a comunidade política e a sociedade religiosa constituem duas dimensões distintas: a primeira é necessária e visa a paz, a segurança e a prosperidade (o bem público); a segunda é voluntária e visa a salvação das almas.

Desta diferente natureza e propósito deduz Locke o princípio da tolerância: o estado deve garantir tolerância religiosa (com exceção dos católicos ou papistas) uma vez que as confissões remetem para o foro interno e não colidem com a ordem pública. No que diz respeito ao bem público, o poder político tem legitimidade para legislar (até sobre aspetos formais das confissões); mas no que diz respeito ao domínio da consciência, o poder político já não tem qualquer jurisdição. Quanto à fé e à salvação, cada um torna-se o único juiz: aplica-se a lei da consciência individual, que resulta do juízo racionalmente formulado por cada um de decidir o que deve ou não fazer considerando a salvação da sua alma.

Nas famosas palavras de Thomas Jefferson,

Os poderes legítimos do governo estendem-se apenas aos atos que são prejudiciais a outros. Mas não me faz mal que o meu vizinho diga que há vinte deuses ou que não há deus nenhum. Não afeta o meu bolso nem me parte a perna.

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A consagração deste princípio de secularidade tornou-se um dos pilares da modernidade, permitindo sociedades mais pacíficas e politicamente mais plurais, pois as liberdades individuais – de consciência, pensamento e expressão – conduzem ao florescimento intelectual e ao surgimento de diferentes conceções de moralidade.

2 A objeção de consciência

A liberdade de consciência é, assim, um requisito das sociedades livres, que assentam na separação entre esfera pública e esfera privada e garantem um conjunto de liberdades individuais. Diferenciam-se, nessa medida, dos regimes totalitários em que a consciência é politicamente construída e é a própria ordem pública a determinar a moralidade aceitável. Nestes regimes, não decidimos de acordo com a nossa consciência, mas somos obrigados a cumprir as regras estabelecidas, mesmo que as consideremos imorais.

Já nas sociedades democráticas, foi necessário desenvolver mecanismos constitucionais e legais de compatibilização entre a regra da maioria e a liberdade de consciência. É o que acontece entre nós com a salvaguarda da liberdade de consciência no art. 41.º da Constituição da República Portuguesa (que prevalece mesmo em estado de sítio ou emergência: art. 19.º/6) e a garantia de um direito à objeção de consciência (art. 41.º/6 da CRP).

Este direito revela-se particularmente importante na medicina e áreas afins, não só por estas lidarem diretamente com questões morais e de consciência (nomeadamente, as relativas aos limites da vida e da morte), mas também porque a história já nos mostrou como podem ser apropriadas politicamente por regimes que as colocaram ao serviço de uma moralidade única.

A objeção de consciência encontra, por isso, previsão legal no art. 138.º do Estatuto da Ordem dos Médicos e no art. 12.º do Regulamento de Deontologia Médica; no art. 113.º do Estatuto da Ordem dos Enfermeiros (com regulamento específico); e no art. 19.º do Código Deontológico da Ordem dos Farmacêuticos. Está também garantida no diploma que regula a Interrupção Voluntária da Gravidez (e na sua Portaria de regulamentação); no diploma relativo ao Regime das Diretivas Antecipadas de Vontade – Testamento Vital; e, mais recentemente, no diploma que aprovou a Morte Medicamente Assistida.

O reconhecimento deste direito garante a estes profissionais que, independentemente das leis aprovadas, eles não ficam obrigados a praticar atos contra os seus valores éticos, morais, religiosos, filosóficos ou ideológicos – o mesmo é dizer, contra a sua consciência (os pacientes terão de ser reencaminhados para outros profissionais ou serviços; a capacidade de o estado gerir os seus recursos é, obviamente, outra questão).

3 A politização da medicina

Em linha com o meu último texto, temos de ter em conta as transformações políticas e sociais ocorridas nas últimas décadas: a crescente politização da sociedade tem diminuído a esfera de consciência individual e fortalecido uma dimensão pública de moralidade, numa espécie de progresso imposto por ativismos, sobretudo de caráter identitário. É o caso do aborto, que se tornou alvo de disputa, aguerrida e polarizada, não só nos Estados Unidos, como também em alguns países do leste da Europa.

Particularmente relevante é a posição da União Europeia, que denuncia, mais uma vez, o seu recuo nos valores liberais. Em junho de 2021, o Parlamento Europeu aprovou o relatório “Saúde e direitos sexuais e reprodutivos na UE, no contexto da saúde das mulheres” (o chamado Relatório Matic), que “insta os Estados-Membros a despenalizarem o aborto e a eliminarem e combaterem os obstáculos ao aborto legal”. As recomendações, apesar de não vinculativas, excedem claramente os limites da atuação legítima da União, mas o problema mais grave do relatório reside no facto de questionar diretamente o direito à objeção de consciência:

“[O PE] Lamenta que, por vezes, a prática comum nos Estados-Membros permita que profissionais médicos – e, em algumas ocasiões, instituições médicas inteiras – se recusem a prestar serviços de saúde com base na chamada cláusula de consciência, o que conduz à recusa de serviços de aborto por motivos de religião ou consciência e põe em perigo a vida e os direitos das mulheres.” (itálico meu)

Uma posição de valor quanto ao ato em si caberá à consciência de cada um, mas importa destacar o ímpeto de recusar que se possa pensar de modo diferente, negligenciando esta conquista civilizacional básica: as regras que instituem liberdades individuais foram feitas para a garantia de todos, pois servem de salvaguarda para quando, em outros momentos, ideias que não as nossas estão em posição de poder. Este novo mundo pode estar repleto de “direitos humanos”, mas não será um mundo mais livre.