Para quem queira perceber a relação do Partido Socialista com o actual regime, o caso de Tancos é uma lição importante. O PS governou o país nos últimos vinte e cinco anos, fazendo férias apenas quando faltou o dinheiro. Os seus filiados e respectivos familiares povoam organismos, dirigem departamentos, distribuem contratos. Os socialistas são e comportam-se como os donos do Estado. Mas eis um aspecto curioso: nem por isso parecem levar o Estado a sério, confiar nas instituições ou ter sequer alguma estima pelo regime. Pelo contrário: sempre que sente a sua ascendência beliscada, logo o PS é tomado de um sentimento de subversão e de guerrilha, sem respeito por nada nem por ninguém. Foi o que vimos em todos os “casos” que incomodaram o domínio socialista nos últimos vinte anos, da Casa Pia a Tancos.
À primeira vista, Tancos é o guião para uma comédia. Começamos com um paiol militar em que os ladrões andam tão à vontade como num supermercado. Temos depois ladrões arrependidos, a tentar devolver o roubo. E acabamos com polícias a conspirarem uns contra os outros, para fazerem “aparecer” as armas e fazerem “desaparecer” o assalto. Onde Tancos deixa de ter graça, é quando surge a possibilidade de um ministro, aparentemente a par das encenações militares e policiais, ter mentido à comunicação social e ao parlamento. E onde Tancos começa a ser sinistro, é quando correligionários desse agora ex-ministro inventam cabalas do Ministério Público e tentam, segundo constou, enlamear o Presidente da República. A certa altura, passamos de um Estado onde a defesa e a polícia são a fingir, para um regime onde os governantes não se importam de deitar as colunas do templo abaixo quando as coisas não lhes correm bem.
Desde a Casa Pia, que sempre que a justiça toca no partido-Estado, ouvimos o alarido socialista de que o Ministério Público está politizado. Por um lado, é reconfortante: ao contrário do que ocorreu durante o governo de José Sócrates, quando todas as investigações paravam e todas as provas eram destruídas, o poder socialista não parece, desta vez, ter a certeza de estar para além da justiça. Por outro lado, é preocupante: os dirigentes do PS continuam a não fazer ideia de que o regime possa ser mais do que o domínio que eles exercem. Falta-lhes aquilo a que se chama “sentido de Estado”, ou seja, a noção de que as instituições existem para lá dos seus mais restritos interesses partidários, e que é vantajoso para todos, incluindo para eles próprios, respeitá-las e defendê-las.
Para o PS, é impensável a contenção que, por exemplo, fez Santana Lopes abster-se de guerras com o presidente Jorge Sampaio quando este, em 2004, dissolveu uma Assembleia da República onde uma maioria absoluta apoiava tranquilamente o governo. Com os socialistas, a história teria sido muito diferente. Basta pensar em como não hesitaram em afrontar a Presidência da República entre 2009 e 2011.
Tancos mostrou mais uma vez como os socialistas se reduziram a um partido de poder, para quem o regime só faz sentido enquanto veículo da sua dominação. Quando não lhes serve para isso, pouco lhes importa que rebente, e são eles os primeiros a dar pontapés e a cuspir. É sem dúvida uma das razões da força do PS: um partido assim, grande na sua influência mas mesquinho na sua ambição, intimida naturalmente possíveis críticos e adversários. Mas é também uma das fraquezas do regime, que tem num dos seus grandes partidos de governo um foco de ganância irresponsável. A principal ameaça para esta democracia não está no exterior do regime, como noutros países, mas no seu interior.