Vivi alguns anos na Grã-Bretanha, pelo que não me espantou a tremenda reação dos britânicos à morte de Isabel II que, de 1952 até 2022, teve o mais longo reinado da história do Reino Unido. A monarquia está profundamente implicada na vida de múltiplas instituições britânicas. A dedicação de Isabel II ao serviço público durante sete décadas, em tempos de crescente individualismo, resultava numa popularidade extraordinária, sempre acima dos 70%. Fiquei algo espantando pelo enorme nível de interesse pela sua morte em Portugal e por todo mundo, a avaliar pela extraordinária cobertura pela imprensa. Mas ainda mais interessante foi a irritação de muitos no nosso espaço público com o que consideraram ser uma atenção excessiva à morte da monarca.

Uma atração irracional, uma conspiração mediática?

Admito que a cobertura televisiva possa estar a ser demais para muitos. Eu não tenho paciência, nem tempo para seguir tudo ao minuto ao longo destes dez dias de cerimónias múltiplas por todo o Reino Unido. Mas não vi provas, até ver, de que os responsáveis pelos canais televisivos estejam a gerir a questão com vista à promoção da monarquia. Imagino que conheçam melhor o interesse do público expresso em audiências. Para quem quer mudar de tema não creio que faltem alternativas na TV ou fora dela.

Esta irritação de muito intelectual público nacional parece exprimir sobretudo uma rejeição da atração irracional pela monarquia. E talvez seja irracional. O problema é que desvalorizar o papel das emoções irracionais na política é um erro. Aliás, há muito trabalho de politólogos, internacionalistas, historiadores para mapear e analisar esta dimensão menos racional do comportamento político. Além disso as emoções na política não são necessariamente negativas. Alguém está contra a solidariedade?

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A morte sempre gerou emoções e sempre exigiu rituais para lidar com elas, seja na vida privada ou pública. O surgimento dos primeiros vestígios de rituais fúnebres até é visto pelos arqueólogos como marcando o verdadeiro nascimento da humanidade. Por isso, as repúblicas também têm os seus rituais, os seus apelos emocionais, os seus símbolos, expressos em funerais de Estado e noutras cerimónias. Não há é grande margem para dúvida de que as monarquias são muito melhores nisto dos rituais públicos do que as repúblicas, e a monarquia britânica é a melhor de todas. É difícil competir com a pompa e circunstância da última das grandes monarquias europeias. Também é evidente que estas cerimónias são pensadas para produzir boas imagens, pelo que é natural que as televisões de todo o mundo gostem desta espetacular superprodução.

Contra o império, marchar, marchar?

A nova cartilha supostamente antirracista e anticolonialista não poderia deixar de se manifestar também a este respeito com o habitual simplismo ignorante. Isabel II foi a última monarca de uma Grã-Bretanha colonial, é certo. Mas ela foi uma monarca constitucional duma democracia parlamentar em que as grandes decisões políticas cabem, naturalmente a governos eleitos. Alguém está contra isso?

Aliás, quem acha que o republicanismo é o bem político maior deveria elogiar o colonialismo como um dos principais destruidores de monarquias, a começar pelas Américas. Nos casos em que as monarquias tradicionais, africanas ou asiáticas, aceitaram colaborar com os colonizadores ficaram de tal forma comprometidas que muitas foram arrastadas pela descolonização, que, além disso, optou por não mexer nas fronteiras coloniais para restaurar antigos reinos.

Com a informação que temos nada aponta para a rainha ter aconselhado contra a independência das colónias, e publicamente muito fez para a facilitar. O seu papel como chefe honorária do Comunidade ex-Britânica – Head of the Commonwealth – ajudou à aceitação das independências pelos setores mais conservadores da sociedade britânica. Não por acaso Isabel II foi, por regra, apreciada pelos novos líderes das ex-colónias, o que explica a manutenção desta comunidade e do seu papel na sua chefia simbólica. Mais, fazer equivaler monarquia e império é um evidente erro factual. O facto de França ou Portugal serem repúblicas não impediu que tivessem impérios coloniais e em nada facilitou o processo de transferência pacífica do poder.

Um democrata não gosta de monarquias?

Não devíamos, apesar de tudo, como democratas, ser contra todas as monarquias em todas as circunstâncias? A república estará em perigo? Se estivesse em Portugal, certamente não seria por culpa da falecida Isabel II. É disparatado pensar que o deslumbramento global pelos rituais da realeza e a quase universal simpatia por Isabel II levará a uma vaga de restaurações. Até é possível que várias monarquias historicamente unidas à coroa britânica – nomeadamente nas Caraíbas – venham a optar democraticamente pela república no futuro. Uma das grandes vantagens da monarquia britânica, que explica um poder de atração que gera receitas anuais estimadas em mais de 100 milhões de libras, é que ela permite ao resto do mundo gozar do espetáculo da realeza, sem ter de optar por um regime monárquico. Dizer que um republicano não pode elogiar o sentido de dever de Isabel II ou apreciar um funeral de Estado bem organizado não é sinal de coerência, mas de fanatismo cego.

As monarquias escasseiam, hoje são 43 num total de 193 Estados Membros da ONU. A sua raridade talvez seja outro fator que ajude a explicar o fascínio das poucas que restam. É difícil defender, hoje em dia, que um filho deve herdar a função do pai, algo que era frequente nas sociedades tradicionais. Mas é impossível argumentar com base na história que a monarquia é sinónimo de opressão e a república de liberdade. O facto da Alemanha, da União Soviética, da China serem repúblicas não as impediu de serem palco das mais mortíferas ditaduras do último século, as de Hitler, Estaline e Mao. Algumas das democracias mais avançadas em indicadores de qualidade da democracia ou de igualdade são monarquias, como a Noruega, o Canadá, o Japão, ou a Nova Zelândia.

A monarquia só se manterá na Grã-Bretanha enquanto a maioria dos britânicos o quiser. O Reino Unido até foi pioneiro do regime parlamentar e constitucional, a partir de 1689, depois de ter tido uma experiência precoce com uma república que rapidamente se transformou numa ditadura militar chefiada pelo general Cromwell. Embora o alargamento do direito de voto tenha sido um processo lento, por todo o lado, a verdade é que em 1918 a maioria dos britânicos – inclusive as mulheres – podiam votar em eleições em que tinham a real possibilidade de escolher o próximo governo. Na República Portuguesa tivemos de esperar por 1976. Em suma, é claro que podemos apreciar, na medida em que quisermos, este real espetáculo sem que isso nos torne inimigos da liberdade.