Há dias, respondendo a jornalistas, João Lourenço, o presidente angolano, garantiu que o seu país nunca iria pedir reparações a Portugal pelo passado colonial porque isso, por várias razões que então explicou, não faria qualquer sentido. Ao lado do presidente angolano, Luís Montenegro, em visita oficial a Angola, limitou-se a dizer que nada tinha a acrescentar àquelas declarações do seu anfitrião, mas terá provavelmente pensado no contraste entre a ponderação e razoabilidade demonstradas por João Lourenço e a precipitação e desnorte do seu homólogo português que, no recente mês de Abril, respondendo igualmente a jornalistas, decidiu declarar que Portugal tinha de “pagar os custos” pelos erros ou crimes cometidos nesse passado.
Montenegro terá provavelmente notado que o que interessou aos media locais como, por exemplo, o Jornal de Angola, não foi o assunto das reparações, mas sim o facto de Portugal ter reforçado uma linha de crédito para Angola com mais 500 milhões de euros. Por isso, as perguntas sobre reparações a que João Lourenço tão acertadamente respondeu, não saíram da boca de jornalistas africanos, mas sim da de portugueses, pessoas onde mais facilmente medram e ressoam as ideias politicamente correctas e os sentimentos de culpa face ao mundo que os europeus encontraram e colonizaram. E é possível que Luís Montenegro tenha sorrido interiormente perante aquela lição de bom senso que João Lourenço deu ao wokismo lusitano. Tenho, porém, a convicção de que o primeiro-ministro português não terá apanhado o fio desta meada desde o início, e de que não saberá que este caso nos mostra exemplarmente, e passo a passo, como, por que vias e por que razões o wokismo se instala e actua. Para explicar tudo isso temos de andar um bocadinho para trás e seguir, através das suas declarações, a história pessoal de Catarina Demony, uma jovem jornalista portuguesa, correspondente da agência de notícias Reuters.
Aos 18 anos de idade, e ainda antes de o ser, esta jornalista, que terá agora 31, descobriu, através de uma avó, que descendia de gente que tinha estado ligada ao tráfico transatlântico de escravos. A princípio não soube o que fazer com essa informação. Depois, já na universidade, em Londres, e mais recentemente em Lisboa, à medida que se ia tornando woke, à medida, também, em que ia conhecendo com cada vez maior detalhe as actividades desses seus antepassados, os Matoso de Andrade, como grandes negreiros em Angola, Catarina Demony ia ficando cada vez mais chocada, mais culpabilizada e mais convencida de duas coisas, ambas erradas.
Convenceu-se, em primeiro lugar, de que pertence a “uma geração diferente” que olha para esse passado de traficantes e escravizadores “de outra forma”. Está redondamente enganada. Foram as gentes dos séculos XVIII e XIX que passaram a olhar de forma diferente, criticamente, para esse passado. Foram abolicionistas como Wilberforce ou Sá da Bandeira que fizeram com que os Matoso de Andrade tivessem de mudar de vida e de ramo de actividade. Catarina Demony e o resto da geração woke estão apenas a julgar que descobriram algo no campo do humanitarismo, da justiça social e dos direitos humanos que está, de facto, descoberto e posto em prática há mais de 200 anos.
Demony convenceu-se, em segundo lugar, de que tinha em sua posse um segredo muito escondido, algo que ninguém antes referira. Também está enganada. O seu segredo a respeito dos Matoso de Andrade é um segredo de Polichinelo. Eu referi-o (pp. 325 e 424) em Os Sons do Silêncio, o primeiro livro que escrevi sobre o assunto, em 1999. Aliás, qualquer historiador que queira investigar o tema do tráfico de escravos em Angola nos séculos XVIII e XIX, encontra fatalmente os Matoso de Andrade. No seu Way of Death, um livro magistral publicado em 1988, o historiador Joseph C. Miller teve, claro, de os referir (p. 249) a par de outras famílias de negreiros luso-africanos, como os Correia Leitão, os Vandunen ou os Ornelas. Mas Catarina Demony não falou com Miller, nem comigo, nem com Arlindo Caldeira, apesar de ter sido aconselhada a fazê-lo. Preferiu falar com essa eminência científica que dá pelo nome de Mamadou Ba e, suponho eu, com outros sábios de igual gabarito, e ficou convencida de que tinha em mãos um tema secreto e tabu na sociedade portuguesa.
Armada com esses dois auto-convencimentos e impelida por fortes sentimentos de culpa pela origem nada recomendável dos proventos familiares, cresceu em si uma urgência para contar a história, para se penitenciar em público e para, através dessa penitência e dessa exposição, fazer duas coisas em simultâneo: algo de politicamente útil pelos descendentes das vítimas; e algo que redimisse ou lavasse as nódoas antigas que, na sua visão das coisas, manchavam não apenas a sua família, mas toda a “branquitude”. “Há sempre uma responsabilidade da branquitude” — disse — “de falar sobre estes assuntos, de ser um aliado, de estar lá, usando as suas próprias habilitações, as suas próprias skills, para ajudar o movimento (anti-racista) e a luta”. E mais responsabilidade ainda quando, como era o seu caso, sabia que descendia de negreiros. Ela própria explicou o que sentiu a esse respeito: “Quando descobres que os teus antepassados estiveram envolvidos no maior crime contra a humanidade, tens a responsabilidade de falar, e essa responsabilidade é ainda mais acrescida quando o envolvimento desses antepassados te deram privilégios, quando beneficias de um crime que foi cometido contra outras pessoas. Já disse várias vezes que o dinheiro da escravatura não está na minha conta bancária, mas há privilégios indiretos: a minha família teve acesso, de geração a geração, a empregos, teve acessos a heranças, teve acesso a casas, nunca teve de se preocupar com o ter ou não ter uma casa. Mesmo que indiretamente deu à família acessos que muitas pessoas não têm. Portanto, indiretamente, a escravatura deu-me privilégios. Tendo em conta que foi o maior crime cometido contra a humanidade, que me deu a mim privilégios e que a minha família usufruiu desses privilégios, acho que é obvio que teria de falar. Acho que é uma obrigação”.
Impelida por essa “obrigação” Catarina Demony fez um filme, que foi exibido em 2023, interveio nas redes sociais e desdobrou-se em extensas entrevistas que podem ser lidas ou ouvidas por quem quiser fazê-lo, em que contou a sua história e, considerando que Portugal estava “estruturalmente alicerçado” num passado de “violência e brutalidade”, insistiu na necessidade de o país pedir desculpa por esse passado e de “repará-lo através de políticas públicas”. Com todas essas actividades e intervenções Catarina Demony ter-se-á sentido não apenas útil, mas heróica e excepcional. Como ela mesma afiançou, “é comum em Portugal, se calhar, teres uma pessoa branca a associar-se à luta, mas não no contexto de enfrentar o seu próprio passado e contar este tipo de histórias”.
Chegou-se, entretanto, ao mês de Abril de 2024 e ao jantar anual de Marcelo Rebelo de Sousa com a Associação da Imprensa Estrangeira. Nesse jantar o microfone foi passando de mão em mão para que os comensais, quase todos jornalistas estrangeiros, pudessem entre duas garfadas, fazer perguntas ao presidente. E Marcelo foi respondendo, falando dos ideais de Abril, das relações com o seu filho Nuno, de António Costa, de Luís Montenegro, etc. Ao cabo de uma hora e meia de perguntas e respostas chegou a vez de uma jornalista portuguesa poder colocar uma questão ao presidente. Pegando no microfone a dita jornalista perguntou-lhe qualquer coisa como isto: agora que se celebra o cinquentenário do 25 de Abril e que se pode aproveitar a presença de chefes de Estado africanos em Lisboa para assistirem às celebrações, irá Portugal pedir desculpas pela escravatura e pela colonização?
Todos sabemos que em vez de ter dado uma resposta semelhante à que agora deu João Lourenço, Marcelo decidiu surpreender os convidados e a maioria dos portugueses afirmando que seria necessário “pagar os custos”. “Há ações que não foram punidas e os responsáveis não foram presos? Há bens que foram saqueados e não foram devolvidos?” — perguntou retoricamente. — “Vamos ver como podemos reparar isto.” Com essas declarações deu início a uma pequena crise política que se arrastou por semanas no meio de debates, de reivindicações oportunistas e vorazes de políticos brasileiros, e de ruído parlamentar, com o Chega em primeiro plano a acusar Marcelo de traição à pátria.
Mas sabem quem fez a pergunta que desencadeou a desastrada resposta do nosso presidente e a turbulência que se seguiu? Sim, adivinharam, foi a jornalista Catarina Demony cujas convicções woke e a vontade de redimir os pecados dos antepassados a impeliram a projectar a sua problemática individual, os seus problemas de consciência, sobre o país como um todo. É sobretudo assim que o wokismo se gera e funciona. É provável que as sensatas declarações de João Lourenço, há dias, ajudem a serenar a ventania que, desde fins de Abril, a pergunta de Demony a Marcelo, e a resposta deste, fizeram soprar sobre o país. Mas sendo estes tempos que vivemos aquilo a que já chamei a “Era da Expiação”, tratar-se-á apenas de um breve interlúdio até que um próximo woke, carregado de remorsos por coisas vagas ou concretas, por culpas reais ou imaginárias de longínquos antepassados ou do homem branco em geral, venha causar um vendaval idêntico ao que a penitente e militante Catarina Demony causou.