Há uns anos, num episódio que não quero relembrar mas não esqueço, regressava de uma viagem de trabalho e ao sair do aeroporto, fui inesperadamente agredida e insultada por um estranho. Era Domingo, um fim de tarde já escuro, as ruas estavam vazias. Parecia um filme. O choque sentido naquele momento quase me impediu de apresentar queixa. Devo essa decisão ao desconhecido que me socorreu e me deixou, por sua insistência, à porta da esquadra onde formalizei a queixa. O meu maior desejo era sair dali rapidamente, chegar a casa e fingir que nada tinha acontecido. Aconteceu. O processo arrastou-se durante três anos. As queixas foram arquivadas por falta de provas: não houve ninguém a testemunhar a agressão, e a mão que me agarrou pelo pescoço não deixou marcas conclusivas para a medicina legal. Ficou entre mim e aquele que me insultou e agrediu. Ele sabe. Eu sei. O que me resta desse episódio é a sensação de total impotência e impunidade.

Insultar e ameaçar podem não deixar no corpo marcas para perícia legal mas isso não reduz o seu impacto. Muito menos quando a abundante prova registada é amplificada pela sua reprodução. Refiro-me, como é obvio, ao sucedido com Ferro Rodrigues que, enquanto almoçava no restaurante italiano em frente à Assembleia da República, se viu cercado por negacionistas incapazes de distinguir liberdade de expressão de injúrias, difamação e ameaças.

Se é verdade que é atribuída a Luís XIV a formulação “l’État c’est moi!”, é igualmente verdade que a República somos nós. O poder personalizado pelo Rei-Sol personaliza-se hoje em cada um de nós. Quando Ferro Rodrigues é difamado, injuriado e ameaçado na qualidade de Presidente da Assembleia da República, é a República que está a ser difamada e ameaçada. É o Estado de Direito Democrático. Somos nós. E é um crime.

O Estado “regula vinculativamente a conduta da comunidade, ou seja, cria normas e impõe a conduta prescrita, inclusivamente a si próprio”. Cabe ao Estado agir legalmente para se defender, para nos defender, do que se quer fazer passar por liberdade de expressão, ou por protesto ou por indignação. A manutenção da democracia e do Direito é uma responsabilidade individual e para o Estado deveria ser uma responsabilidade exemplar.

O pacto social implica a protecção da comunidade. Quem se vacina fá-lo por si e pelos outros. Foi esse o compromisso assumido por 85% da população portuguesa. O cidadão Fernando Nobre, ex-candidato à presidência da república, presente, mais tarde, nessa manifestação, pode escolher romper o pacto e não ser vacinado. Também é isto a liberdade que a democracia sustenta. Porém, o médico Fernando Nobre, não pode, nessa qualidade, invectivar a vacinação nem produzir para-ciência.

A estrutura que sustenta a comunidade é o Estado de Direito. Quando os seus mecanismos nos falham, é o tempo da impotência e da impunidade.

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