O Plano de Recuperação e Resiliência (PRR), quando se compara com o rascunho inicial, introduz apenas duas mudanças: a Cultura e o Mar. Já vamos ver de onde saiu esse dinheiro. A capitalização e inovação empresarial até recebe menos 32 milhões de euros do que anteriormente. O que o Governo fez foi embrulhar as coisas de outra maneira para satisfazer as criticas, sem nada mudar de substancial. Vamos é agora ver como vai explicar à Comissão Europeia por que não coloca 37% do dinheiro na transição energética e 20% na digital, respeitando as orientações gerais do Mecanismo europeu de Recuperação e Resiliência.

O PRR, contas feitas, concentra 60% dos 13.944 milhões de euros na componente Resiliência, ficando 22% para a Transição Energética e 18% para a Digital.  Se esta for a organização apresentada em Bruxelas, não respeita as regras. Mas olhando para o documento, percebe-se que existe margem para o refazer, ajustando-se ao fato das regras europeias. Por exemplo, o pilar da Resiliência tem investimentos que cabem quer na transição digital como na energética.

A nova versão reforçou a componente da transição energética graças fundamentalmente à inserção de medidas associadas ao Mar. Esta área vai receber 252 milhões de euros para a “reforma do Ecossistema de Infraestruturas de Suporte à Economia Azul”.  Neste momento não se percebe bem que projectos são estes.  A Cultura é outra das novidades, recebendo 243 milhões de euros para o património cultural e para redes culturais e transição digital.

Mas para termos o Mar e Cultura no PRR, isso significou retirar dinheiro de outras áreas. No domínio da transição energética, ficou a perder a mobilidade – leia-se transportes –, a eficiência energética dos edifícios onde está, por exemplo, o combate à pobreza energética e a o hidrogénio e renováveis. As infraestruturas, a habitação, a gestão hídrica, as florestas, as qualificações e a inovação empresarial foram os que perderam dinheiro na componente de resiliência.

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Quanto a uma das principais criticas, a de que o dinheiro ia fundamentalmente para o Estado, nada mudou. O que os empresários conseguiram foi um compromisso do Governo de lhes dar uma verba mais elevada nos empréstimos que vai pedir, deixando cair o financiamento para os comboios. Quer no rascunho inicial como na versão final, o Governo diz que vai usar 2,7 mil milhões de euros da componente de crédito do mecanismo europeu. No rascunho 300 milhões seriam investidos em comboios que agora desaparecem. Para as empresas ficam 1,55 mil milhões de euros.

Resumindo, os empresários ficaram aparentemente satisfeitos porque boa parte do aumento da dívida do país vai ser para eles. Não é, de facto, só o Estado que funciona mal em Portugal. Os empresários do regime estão viciados em apoios, parecendo incapazes de se capitalizarem. Não são todos, como é óbvio, são aqueles que vivem nos corredores do poder e se queixam no espaço público e nas reuniões com o Governo e o Presidente da República. Há décadas que recebem apoios europeus sem que se perceba o que fizeram com eles. O crescimento medíocre que o país tem tido é também da responsabilidade destes empresários que vivem à custa do regime.

Concentrar os investimentos no Estado pode não ser o ideal, mas é seguramente o que pode dar maiores garantias de um uso rápido do dinheiro e, além disso, promete modernizar um Estado que está à míngua pelo menos desde o início do século XXI. Sim, é verdade que o dinheiro dos contribuintes podia ter sido melhor usado, até nestes últimos cinco anos. Mas já percebemos que não haverá coragem política para o fazer. E precisamos urgentemente de investimentos na saúde, na educação e na justiça, para dizer o mínimo. Investimento físico, mas também humano e de organização. E essa é a parte, a da organização, com coragem para acabar com cargos e empregos improdutivos, que pode faltar.

O problema não é haver dinheiro em excesso para o Estado, até porque o que se investir no sector público significará negócios para os privados. O problema é se nos ficamos apenas pelo investimento físico, de construção e compra de computadores e carros eléctricos e nos esquecemos de contratar as pessoas que de facto o Estado precisa. Quanto às empresas, com excepção das que sofreram com a pandemia, era tempo de se capitalizarem com os lucros que vão tendo. Um dia o dinheiro da Europa acabará e terão de deixar de viver de rendas.

O Governo continua a revelar uma enorme arte de nada mudar parecendo que tudo mudou. O PRR o que oferece aos empresários é apenas mais empréstimos, com a respectiva dívida para o país.