1 Um legado não é uma herança. Não são confundíveis embora muitas vezes me aperceba da distração de empregar ambos os substantivos de igual modo. É como os “chamados” – que sabemos serem muitos – e os “escolhidos” que ancestralmente aprendemos serem muito menos. São imensos os que deixam herança, grande ou pequena – mas só aos “escolhidos” é dado o dom de quando partem, ficaram connosco através do seu legado.
Aconteceu agora com um amigo. Em certo sentido, irmão ainda mais que amigo. Despediu-se do mundo, partiu silenciosamente para outra morada, e foi como se se tivesse fechado um enorme leque cujas folhas escondiam as muitas formas do sofrimento que o provaram nos últimos anos. Provações de natureza diversa, sempre pesadas, sofrimento de longo prazo, durou nove anos.
O exercício de sobre ele escrever não me será fácil tal a dificuldade com que hoje alguém normalmente constituído se defronta – não só neste caso, obviamente – para galgar os vários muros que se interpõem entre o ar do tempo, o pensamento único, a ditadura do politicamente correcto, o acinte e insulto como base de argumentação; e do outro lado do muro, aquilo que se tem como uma obrigação. Não falo do dever da amizade (esse guardá-lo-ia para mim) evoco uma obrigação cívica (os sentimentos virão ou não virão depois, à tona da água desta prosa). O que evoco é a obrigação que me advém de ter seguido, acompanhado, testemunhado de muito perto, toda uma vida de alguém (desde que ambos tínhamos 12 anos até anteontem). E querer contar o que vi.
2 José Manuel Espírito Santo Silva foi em Julho de 2020, um dos acusados do caso BES. Trabalhava de pertíssimo com Ricardo Salgado, no Banco da família, desde que Salgado assumira a liderança do grupo BES: era seu primo, amigo íntimo, confiava inteiramente nele, não escondia a admiração que lhe votava, reconhecendo-lhe sem sombra de hesitação liderança, talentos e dons que a si próprio se negava. Ricardo Salgado era “o” Ricardo, José Manuel confiava em Ricardo. Confiou sempre, o que o dispensava de se interrogar. O que ele não sabia na altura – mas poucos seriam os que verdadeiramente sabiam de tudo – era que o líder do Grupo BES geria tudo (e todos) apoiado num pequeno, muito pequeno, comité de colaboradores (para resumir de forma obviamente simplista tão complexíssima e tristíssima ocorrência). Até ao fim foi essa persistente e continuada confiança que sem falhas nem reticências ia substituindo a perplexidade e mais tarde a dúvida quando ambas se cruzaram com o próprio José Manuel. Terá sido incauto.
Correu mal como se sabe. Pior talvez fosse aliás impossível. Como membro do conselho de administração do banco não era possível – nem credível – não atribuir também a José Manuel responsabilidades pelo rasto de destruição deixado no país após o terramoto. Destruição abrangente: em perdas, danos, escândalo e de milhares de pessoas lesadas nas suas grandes, médias ou pequenas “economias”, confiadamente depositadas numa instituição bancária vista como de aço e cuja reputação se suporia à prova de bala. Mas ninguém ainda conhecia a história: nem a história do principio ao fim, nem como ela fora. E um dia, a Justiça agiu, José Manuel foi acusado: foi-o em vários processos – como o processo principal do caso BES e no caso do último aumento de capital do banco –, mas a verdade impõe que se diga isto: a justiça reconheceu que ele não pertencia ao pequeno comité que Salgado usava para mandar no banco. E por isso mesmo foi excluído do crime de associação criminosa que foi imputado a Ricardo Salgado em Julho de 2020. Ou seja, houvera responsabilidade, não havia culpa. Isto é: houvera a responsabilidade por outras situações, não havia culpa pelo crime maior. A nuance não é de somenos. É nela que muito provavelmente se instala uma das cruciais diferenças entre o bem e o mal (mesmo que perdure a responsabilidade).
E não era senão aqui que eu queria chegar, desde o início desta prosa. À imensa diferença entre responsabilidade e culpa.
3 Pouco tempo após o escândalo nacional do BES procurei naturalmente este amigo, como se faz com aqueles com quem crescemos, rimos, choramos e vivemos. Encontrei um homem quase irreconhecível. Destroçado pela vergonha, a humilhação, a tristeza, era difícil distinguir onde começavam e acabavam umas e outras, todas confluindo para o lago do seu desgosto. Desfeito, parecia um resto de si mesmo. A sua boa formação, a noção de honra, os valores em que fora educado, subitamente, de um minuto para o outro, expulsavam-no do universo da dignidade onde sempre vivera. Nada do que pública e mediaticamente ocorria em Portugal era de todo compatível com ele e o seu carácter; com o que ele (verdadeiramente) era, mas que se dizia que (falsamente fizera). Estava consumido pela dimensão da mancha que perante o país parecia sepultar o nome Espírito Santo para sempre. O nome dos seus pais e avós, um nome-marca-de-família. Um ex-libris de confiança, dentro e fora de portas.
Quando conseguiu voltar ao de cima de si mesmo, foi pessoalmente pedir desculpa às pessoas a quem tinha – também pessoalmente – pedido para investirem no banco; procurou, um a um, os presidentes ou directores de clubes, associações, instituições de que era membro, dizendo-lhes que “saía por já não se achar digno de continuar a ser membro ou de pertencer ao que quer que fosse”. E saiu, até do seu ginásio. Meses depois teve finalmente ocasião de concretizar o que queria desde o primeiro momento da sua tragédia: pedir desculpa ao país. Estou em condições de afirmar que não o fez por imposição de advogados ou conselho de amigos, fê-lo por si, genuinamente, sinceramente.
E quem não acreditou em José Manuel Espírito Santo quando olhando os deputados da Comissão de Inquérito de frente – e através deles, Portugal inteiro – ele perguntou: “mas quem é que não acreditava no dr. Ricardo Salgado?”.
Ou não é verdade que “se” acreditava? Que todos ou quase todos acreditavam?
Ofereci-me obviamente para sua testemunha de defesa, fui ouvida em duas ocasiões distintas por dois juízes, fiz o que me competia.
4 Com as contas naturalmente bloqueadas – as dele e de toda a família –, o viver como pudesse e do que houvesse era – testemunhei-o também – a menor das dificuldades ao pé da humilhação íntima, pessoal, familiar – e nacional – porque passava. Apesar do indefectível apoio da sua formidável mulher, dos quatro filhos, e dos amigos, a provação não conheceria fim. Nunca se refizera totalmente da arbitrariedade da sua prisão em Março de 1975, da nacionalização do banco da família, do confisco dos seus bens; da saída do país então ainda para um destino e modo de vida incertos. E agora perdia pela segunda vez não só o banco de família como, achava ele, a honra. Ficaram sequelas, irremovíveis: tão débil era a raiz do seu estado de “anima” que um dia um brutal AVC varreu qualquer vento de esperança de melhores dias. Continuávamos a vê-lo – continuámos sempre – mas nem a vida nem o sentido voltaram. O choque sofrido tornara a doença irreversível.
À medida que todas estas coisas aconteciam, uma coisa se sobrepunha, forte, eloquente, grande, a tudo o resto: o seu exemplo. Os seus mais próximos amigos e eu havíamos de perceber que esse viria a ser o seu melhor e maior legado. Já tínhamos essa certeza adquirida ao longo da vida, mas a provação ampliara a certeza. Não era uma herança, era um legado que nos deveria orgulhar e responsabilizar: o exemplo da dignidade no seu sofrimento, na aflição obsessiva com o grupo dos “lesados”, na insistência com que, ainda em bom estado de saúde, não pensava senão na reabilitação do nome da família e em como fazê-lo. Na genuína determinação, por vezes quase ingénua, com que lutava contra cépticos, desconfiados, maldosos. O transtorno cerebral motivado pelo AVC interpôs-se e vetou-lhe o seu combate pela verdade das coisas como foram. O destino não foi generoso E tudo o que o Zé Manel teria necessitado era simplesmente de um pouco dessa generosidade que toda a vida ele dera aos outros.
5 É verdade: o exemplo vinha de longe. Desse Zé solar, radioso, acolhedor, terno, amigo ate à medula do seu amigo. Praticava um incrível sentido de humor acerca dele próprio, raro dom aliás: pouca gente conheci que ironizasse assim consigo mesmo. Ríamos com ele e poucas coisas unem tanto os seres humanos quanto o rir em comum das mesmas coisas. Amigo íntimo de reis e ex-reis, cosmopolita, frequentador de aristocratas, conhecedor de bons ambientes, as honrarias nunca o deslumbraram: era um simplório de trazer por casa.
Solar, alegre, amigo. Quantas histórias e memórias, agora. Quanta vida partilhada, tanto passado guardado por todos nós, seus amigos. Tanta coisa, de que a vida é feita, tanto riso e festa e sonho, tantos maus bocados, aflições, perdas porque passamos ainda jovens ou já menos jovens mas sempre o “Zé” presente. Só mais tarde vínhamos a saber – e nunca por ele – como se interessava, colaborava, auxiliava quem lhe batia a porta. Era um atento que disfarçava bem – atento à família, ao amigo próximo, ao menos próximo, ao conhecido, ao desconhecido; e um generoso que disfarçava mal: acudia de todas as maneiras, esbanjava generosidade, driblava qualquer dificuldade por um familiar ou amigo. Nada do que fazia pelos outros se confundia com dinheiro, cunhas ou favores, era ele que se dava a si mesmo, envolvendo-se onde se sabia preciso e acorrendo onde suspeitava ser bem vindo. Apesar de após sol tão radioso ter vindo o peso da mais sombria das sombras, é com o Zé solar que resolutamente ficamos. E com qual outro havia de ser com tão maravilhoso exemplo de vida?