1 Na noite de 2 de Maio, quando decidiu manter o ministro João Galamba, contrariando a posição do Presidente da República, o primeiro-ministro António Costa defendeu a teoria da “imputabilidade” para haver responsabilidade política. Disse: “Não posso prescindir de um membro do Governo que deu provas ao longo dos anos da sua competência e dedicação ao serviço público nestas funções que exerce, porque se entende que há uma responsabilidade abstracta pelo facto de ele ser ministro.” O pensamento afirmado pelo primeiro-ministro foi que a “única actuação” de Galamba foi demitir um colaborador que “estava a omitir documentação” e que ao ministro “não lhe é imputável pessoalmente qualquer falha”. E acentuou a necessidade de “imputabilidade”, afirmando: “A minha consciência diz-me que não posso imputar ao doutor João Galamba nenhum acto ou omissão que determinem a sua demissão.”

Este é um erro basilar. A responsabilidade política é independente de culpa.

A responsabilidade criminal, a responsabilidade civil, a responsabilidade disciplinar, a responsabilidade financeira envolvem culpa – aliás, com excepções na responsabilidade civil. Já a responsabilidade política não depende de culpa, por uma razão simples: nada tem a ver com justiça. Não é “crime e castigo”, é de outra ordem.

A responsabilidade política corresponde, por um lado, ao dever de qualquer político responder pelos seus actos ou omissões, prestar contas, estar sujeito a escrutínio; e, por outro lado, à avaliação, a todo o tempo, sobre se tem, ou não tem, condições para continuar no exercício das suas funções e poder assegurar as suas funções, responsabilidades e tarefas. É esta última vertente – a avaliação das condições políticas – que pode implicar a demissão de um político, ou porque ele próprio se demita, ou porque deva ser afastado.

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2 Não há julgamento. É uma decisão instantânea. Pode ser precedida por um período de desgaste até que a ausência de condições políticas se torne indubitável – muitas vezes é assim, porque o político não é lesto a perceber que está fora de pé. Mas a decisão é repentina, não é proferida no fim de uma instrução. Fosse a responsabilidade criminal, civil, disciplinar, financeira, não seria exercida sem processo com garantias, apreciação lenta e decisão madura, fundamentada em sentença ou equivalente. Na responsabilidade política, é ao contrário: constatada a falta de condições para continuar, quanto mais depressa for exercida, melhor. Arrastar situações politicamente insustentáveis mina a estabilidade e gera o apodrecimento.

Actos desastrados, gestos inconvenientes, palavras incendiárias, praticados com culpa pelo político também accionam, é claro, a responsabilidade política. O mesmo acontece com factos de responsabilidade criminal ou outras da competência dos tribunais – também podem accionar a responsabilidade política, havendo culpa. Mas também sem culpa. Por exemplo, se um político for investigado judicialmente ou julgado por matéria criminal pesada, deve afastar-se ou ser afastado, independentemente de a culpa estar estabelecida e podendo vir a ser absolvido ou até a provar-se a sua inocência. O que releva, no plano da responsabilidade política, não é a culpa comprovada, mas a impossibilidade de continuar em funções na pendência das suspeitas ou acusações. Pode tratar-se até de facto de familiar, sócio ou amigo; ou pode ser desastre natural, acidente grave ou catastrófico, acontecimento fortuito. O que releva não é a culpa ou a responsabilidade pessoal e directa, mas que o facto em causa e seus efeitos provoquem para o político ausência de condições políticas para prosseguir. A culpa no facto perturbador aumenta a exigência de responsabilidade política e convoca-a nas duas vertentes: porque, tendo culpa, o político é responsável pelo facto; e, porque, tendo ou não culpa, o facto em si é de tal ordem e intensidade que abalou fortemente ou destruiu as condições de exercício. O fundamental é o sarilho, não a culpa no sarilho.

O relevante é a deterioração acentuada das condições políticas. Se esta deterioração se produziu para além do razoável e aceitável, se os riscos de continuação em funções são enormes, se o facto ocorrido produz forte inibição de desempenho, a situação deve ser atalhada – e quanto mais rápido, melhor. Se o próprio não o faz por si mesmo, quem dirige o enquadramento político deve determiná-lo.

3 No caso do ministro João Galamba, o caso é óbvio. Diríamos até um exemplo de escola. Primeiro, se disso se tratasse, o ministro alguma culpa terá nos factos acontecidos. A questão nunca foi “a de demitir um colaborador” (embora o Chega a suscitasse na Comissão Parlamentar de Inquérito para efeitos de teatro, é matéria da inteira e exclusiva liberdade discricionária do ministro). A questão é tudo o que rodeou e motivou a demissão, a pancadaria na Barbosa du Bocage e o seu alastramento catastrófico até ao SIS – o Estado ao serviço de um partido e da explosão temperamental. Mas, mesmo sem cuidar da culpa quanto aos factos, estes valem por si mesmos e pelos efeitos produzidos. É mais económico e enxuto não entrar na discussão da culpa e olhar directamente aos factos e seus efeitos.

Tudo quanto se tem passado desde 2 de Maio era previsível que iria acontecer. E continuará. Assim como já fervia, a crescer, desde 26 de Abril.  Um ministro das Infraestruturas não tem condições para exercer o cargo no epicentro desta querela em quatro andamentos (“a TAP lembram-se?”, as reuniões secretas, a pancadaria e o SIS), quando tem matérias importantíssimas do país para tratar e ficou afogado neste enredo e dele prisioneiro.

O Partido Socialista tem, na sua história, exemplos das duas atitudes: o de que a responsabilidade política muito importa e o de que a responsabilidade política nada importa.

O maior exemplo da primeira é o caso de Jorge Coelho. Em 2001, quando ruiu a ponte em Entre-os-Rios, vitimando tragicamente dezenas de pessoas que a atravessavam num autocarro, Jorge Coelho, ministro do Equipamento Social (as Infraestruturas da altura), apresentou de imediato a demissão. Não tinha obviamente a menor culpa na tragédia, mas “assumindo a responsabilidade política” pelo acidente, “não ficaria bem com a [sua] consciência se não o fizesse”. E determinou um inquérito para “a culpa não morrer solteira”. O exemplo ficou como alta referência de dignidade pessoal e política. E o caso da ponte, complexo, duro e doloroso, pôde ser investigado sem o ministro a arder diariamente, nem o governo a afundar-se com ele.

Da segunda atitude, o exemplo notório mais recente é o de Eduardo Cabrita. Em 2020, foi a morte violenta do ucraniano Ihor Homeniuk, nas instalações do SEF no aeroporto de Lisboa. Em 2021, houve o atropelamento mortal de um trabalhador de manutenção de vias na A6, pela viatura de serviço em que o ministro era transportado. Os casos foram tratados de forma inábil e descuidada. O primeiro foi trepando na hierarquia até atingir a Directora Nacional do SEF. E, na tentativa de não passar daí para cima, redundou objectivamente em responsabilização colectiva do SEF, motivando a decisão desastrada de reforma com desmantelamento do SEF, que, três anos depois, ainda se arrasta inconclusa. O segundo caso, foi pior. Por um lado, é evidente que o ministro Eduardo Cabrita não era culpado do atropelamento mortal, terrível infelicidade. Mas o facto de não ser assumida a delicadeza da situação e a inerente responsabilidade política, retirando-se o ministro, levou a que se agravasse continuamente, o ministro acabasse, meses depois, por sair em baixa e esteja, hoje, a ter de responder em tribunal. Asseguram-me que Eduardo Cabrita quis várias vezes sair e só ficou por insistência do primeiro-ministro. Não sei. Mas é óbvio que se, até em sinal de luto, tivesse saído logo e o governo mostrasse entender que um ministro responsável pela segurança rodoviária não podia manter-se em funções na infelicidade de estar num acidente mortal (para mais, em circunstâncias de excesso de velocidade), não teria acontecido a constante degradação política e pessoal do caso.

Qual é o paradigma que, dos dois, o Partido Socialista quer seguir?

4 O juízo e a aplicação da responsabilidade política não são imperativos. Nem no acto, nem no modo. Como tudo o que é política, dependem da ponderação que se faça, que assenta em juízos de necessidade, adequação, oportunidade ou conveniência. E, quando envolva ponderação de justiça não é de justiça judiciária, mas de justiça ética e de senso comum. Por isso, quer o ministro, quer o primeiro-ministro têm obviamente a liberdade de ponderar e de escolher. Podem-no fazer bem ou fazer mal. Com as respectivas consequências.

João Galamba andou bem ao demitir-se, cerca das 20h00 do dia 2 de Maio, afirmando que “a preservação da dignidade e a imagem das instituições é um bem essencial que importa salvaguardar” e querendo também proteger “a minha dignidade, a da minha família e a das pessoas que comigo trabalharam no Gabinete e que foram nestes últimos dias gravemente afetadas”. Lembro bem que logo se sentiu no ar alívio e desanuviamento. Foi breve, contudo.

O primeiro-ministro cortou logo o alívio, pelas 20h45, anunciando não aceitar a demissão, embora pedindo “desculpa a todos os portugueses pelo incidente deplorável ocorrido no Ministério das Infraestruturas”, que imputou ao adjunto demitido pelo ministro. Assim extinguiu o desanuviamento que fugazmente se sentira. Repôs fragorosamente o imbróglio em cima da mesa. Abriu divergência pública com o Presidente da República sobre o critério a aplicar. E destruiu o gesto anterior do ministro, por deixar a ideia de que foi tudo combinado. Não há dignidade horária. Não se veneram gestos sobre que impende um efeito Cinderella: uma demissão que se desvanece ao sinal horário, no caso não à meia-noite, mas às oito e três quartos.

Habitualmente, a encenação não melhora estes casos. O ministro teve, acertadamente, a noção de que sair era essencial para preservar “a dignidade e a imagem das instituições”. Agora, a continuação em funções tem tudo para fazer alastrar o mal. Desde logo, sobre si próprio: quando se deixa ou se empurra alguém para uma fogueira, não se pode esperar outra coisa senão vê-lo queimar-se e acabar esturricado. A seguir, sobre o conjunto do governo, inevitavelmente contaminado pelos efeitos colaterais ou de grupo. Enfim, na maioria parlamentar, que mais se desacredita ao dar cobertura e apoio expresso ao insustentável, demonstrando não se importar com a razão, mas apenas com ser maioria tutti-frutti, isto é, para tudo o que quer que seja.

5 As instituições entram, assim, em degradação geral. Acrescentando às figuras constitucionais de demissão do governo e de dissolução do Parlamento, vemos surgir uma novidade: a diluição política geral.

É nisto que estamos, à espera de saída.