Só não estranho os passos de dança para a despedida da geringonça, em virtude da tendência que a política portuguesa tem para uma certa teatralidade. Francisco Assis tem razão ao ter apontado que “a geringonça acabou no domingo eleitoral e não com a divergência com o Bloco”. Mas só pode aparentar estranheza por este facto inevitável.

Em Junho passado, escrevi aqui um artigo em que o previ e procurei explicar porquê: “Esqueçam! A geringonça acabou”. Como afirmei, “a geringonça chegou ao fim. E não voltará depois das eleições de Outubro. Nem é só no cenário de o PS conquistar maioria absoluta – um cenário improvável, mas possível. É também no cenário de o PS recolher apenas maioria relativa, como é a perspectiva dominante.”

A geringonça não tinha as menores condições políticas para se manter depois de 6 de Outubro, a menos que se voltasse a repetir o cenário único de 2015: formar-se uma maioria de esquerda no Parlamento, mas ser o PSD o partido mais votado, e não o PS.

Como procurei pôr em evidência, “a geringonça não foi uma coligação interpartidária, como sempre houve e haverá”. O que a explica e produziu “foi a singularidade inédita da situação política resultante das eleições de 2015”, que nunca acontecera. Primeiro, “o PS não dispunha de condições políticas suficientes para avançar sozinho” para o governo. Segundo, por isso, “necessitou de se munir de acordos prévios à esquerda que lhe assegurassem o mínimo de segurança parlamentar”, o que sucedeu pela primeira vez. E, terceiro, “os outros partidos à esquerda (BE e PCP) tinham interesse em aproveitar o novo quadro de maioria de esquerda, em vez de complicarem e favorecerem cenários de crise política que, passados alguns meses, precipitassem eleições antecipadas, arriscando o regresso eventual de uma maioria à direita.” Ora, “foi isto que conduziu à geringonça, no formato original que assumiu” e com o nome que se lhe colou – “a aparência “tailor-made” de brinquedos engenhosos, copiando aqueles veículos para explorações no planeta Marte: umas viaturas desengonçadas, com quatro rodas independentes e suspensão autónoma em cada uma, de fácil adaptação a orografias muito acidentadas, aptas a percorrer longas distâncias sem serem barradas por obstáculos, nem capotarem em acidentes fatais.”

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Cumpriu a missão para que foi concebida e desenhada: “assegurou ao governo a maioria de que necessitava; e a cada um dos parceiros a autonomia individual de que nenhum podia prescindir.” Mas, a partir de 6 de Outubro, como se previa, o PS voltou “à situação em que esteve várias vezes desde as primeiras eleições legislativas de 1976: PS o mais votado, num quadro de maioria de esquerda. E fará provavelmente o que sempre fez: formará um governo minoritário sozinho e confrontará os outros, à direita e à esquerda, com as suas responsabilidades.”

No novo quadro parlamentar, o PS “já não precisará de fazer acordos escritos à esquerda. Porventura terá a inclinação de os fazer, em continuação e por arrasto desta legislatura; mas não é claro que os partidos à esquerda queiram repeti-los, em vez de ficarem de mãos totalmente livres.” Destes, aquele que era mais claro que não quereria renovar qualquer acordo escrito com o PS, era o PCP. Nos últimos meses, foi dando repetidos sinais nesse sentido. E compreende-se bem porquê: o PCP foi o parceiro que pagou o preço político mais elevado, nas autárquicas de 2017 e nas europeias de 2019 – e as legislativas ainda confirmaram.

Foi à valsa do adeus que assistimos nos dias que rodearam a indigitação do primeiro-ministro e a preparação do novo governo. O PS fez uma ronda por todos os partidos à esquerda, aparentando acenar com um acordo com todos – que incluíam, desta vez, também o PAN e o Livre. O PCP tornou claro não querer acordo escrito. O BE avançou com a vontade clara de acordo escrito. E o PS, para rematar a valsa, anuncia não fazer acordo com nenhum, porque não era possível acordos com todos.

A posição do PS compreende-se, pois não podia ficar amarrado só ao BE: pareceria preferir só este e aparentaria desconsideração pelo PCP. Mas, na verdade, antes de a valsa começar, toda a gente já sabia qual era a posição do PCP. O Bloco fez o papel próprio do partido que se quer consolidar como partido de governo: chegou-se à frente com papel escrito e sublinhou conceitos como “compromisso de legislatura” e “estabilidade”. Mas toda a gente já sabia que ia ser assim, cabendo ao BE representar de forma fiel e credível este papel que escolheu. E, quanto aos outros (PEV, PAN e Livre), recolheram, na parte respectiva, os réditos políticos de terem sido convidados para a operação “valsa do adeus”.

Francisco Assis acerta, uma vez mais, ao apontar que, carregando nas palavras, a geringonça “foi objectivamente um expediente a que a direcção do PS recorreu há quatro anos para superar uma derrota eleitoral em termos relativos e para garantir um apoio parlamentar”. Foi isto. Mas a geringonça também serviu aos outros partidos de esquerda (BE, PCP e PEV) para aproveitarem esse quadro eleitoral de 2015 para entrarem na área do poder, onde já não estavam desde os Governos Provisórios de Vasco Gonçalves em 1975.

Agora, como era previsível, “no fundamental regressaremos ao quadro clássico: lidera e governa o partido mais votado dentro da maioria parlamentar.” O PS tem vasto espaço para navegar à esquerda, ao centro ou à direita – como escrevi, “porque as hipóteses são muitas, tudo o dependerá de cada força política e dos entendimentos que o quadro de Outubro proporcionar ou impedir”.

António Costa estará em posição semelhante à de Mário Soares em 1976 e em 1983, à de Guterres em 1995 e 1999 e à de Sócrates no último governo de 2009. É provável que, na embalagem da legislatura anterior, o governo PS comece pela esquerda (que obteve maioria reforçada) e aí manifeste a sua preferência – não é geringonça, mas o espírito de 2015 lá andará. Todavia, o PS já não precisa de toda a esquerda ao mesmo tempo e pode variar os apoios à esquerda. E pode também alargar o diálogo político à direita e ao centro. Poderia até, se as circunstâncias o proporcionassem, romper a lógica do início da legislatura e estabelecer uma linha de bloco central para não se deixar encurralar. Tudo vai depender das circunstâncias, da dinâmica do governo, dos temas, e dos apoios e oposições como se manifestem.

Só podemos dar por certos alguns factos. O governo navegará à vista. O PCP repetirá sempre que o governo faz uma política de direita – di-lo sempre desde 1976, incluindo durante a geringonça. O BE apontará a mesma crítica, mas espreitará qualquer oportunidade para consolidar a sua posição e ambições como partido que aspira a governar. PSD e CDS terão de resolver os efeitos da derrota eleitoral, mas têm vantagem em ser oposição clara e com capacidade de proposta e de iniciativa, mas não oposição entrincheirada e sistemática. Se a direita quiser encurralar o PS, este desloca-se para a esquerda. Se a esquerda quiser encurralar o PS, este desloca-se para o centro.

Depois da geringonça, chegou a legislatura da valsa. Não é novo. São quadros que já vimos; mas sem previsões possíveis. Pode durar a legislatura toda, ou cair a meio. Agora, os protagonistas são outros, os partidos são outros (10 partidos desta vez) e os tempos também são outros. A única coisa certa é que, a menos que houvesse uma improvável travagem do PS ao centro, o mandato 2019/23 será muito pior para a direita do que foi 2015/19. Em 2015, a esquerda elegeu 123 deputados, havendo 107 à direita. Agora, a maioria de esquerda galgou para 144 deputados, sobrando à direita apenas 86. A esquerda não chegou à maioria de 2/3, que chegou a temer-se, mas o desastre à direita foi grande.