1 Faço parte do grupo de portugueses que, vendo a situação política, abriram a boca de espanto no final do ano e ainda não a conseguiram fechar. E, ora pelo impacto, ora pelo desgaste que estes factos sempre provocam, há uma constatação que, hoje por hoje, todos podemos dar por certa: esfumou-se num instante o capital de confiança, de estabilidade e de previsibilidade políticas que seria o lado positivo da maioria absoluta.

O quadro político é ainda pior, se olharmos a evidências reveladas pelas duas crises governativas ocorridas entre a véspera de Natal e o dia de Reis: a crise Alexandra Reis e a crise Carla Alves. Em parte relevante, são “danos colaterais” de lutas internas no PS e de outras debilidades do partido que abalam, inclusive, o bom nome do Partido Socialista. As crises acontecidas não resultaram de ataques bem conseguidos da oposição, nem de reformas ou acções políticas que desencadeassem resistências, contestação e até motins. Nada disso. Só houve governantes a minarem, por si, a imagem e o crédito do governo, socialistas a guerrearem-se entre si mesmos e políticos do PS ou saídos do governo a surgirem no centro de notícias nada honoráveis.

2 Os desafios do primeiro-ministro António Costa, depois de uma quadra natalícia de alto desgaste, não estão apenas ao nível do governo, para repor a funcionalidade e o crédito público, mas também como secretário-geral do partido, para conseguir, por um lado, debelar as lutas tribais que se agitaram e, por outro, exigir uma orientação coletiva e individual de comportamento ético irrepreensível por parte dos responsáveis socialistas a todos os níveis de exercício do poder, desde o poder local à administração central.

Desde o caso Miguel Alves e o dos exonerados secretários de Estado da Economia (superados com a recomposição do governo em 2 de Dezembro) até ao caso da secretária de Estado por 24 horas, em 5 de Janeiro (caso ainda não encerrado e recomposto), sucederam-se factos e situações reveladores de falta de senso, leviandade, espírito de facção, oportunismo e aproveitamento pessoal, que não ferem só a reputação de quem lhes deu causa, mas mancham todo o partido. Por isso, são indispensáveis acções enérgicas e eficazes do secretário-geral do PS, que é o partido que quis e obteve a maioria absoluta, para repor o crédito do partido, indispensável a repor também o crédito da maioria e do governo. O crédito do partido está muito seriamente abalado. E os casos vão-se sucedendo.

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As lutas tribais soaram para o exterior, quando a crise Alexandra Reis atingiu o “pedronunismo”. Foi evidente o transbordar das divisões internas, fazendo soar duras críticas públicas de figuras socialistas a governantes ou ex-governantes.

Com isto, não critico, por exemplo, a tomada de posição forte de Alexandra Leitão perante o caso Rita Marques, a ex-secretária de Estado do Turismo, agindo como num offshore jurídico. Essa posição de Alexandra Leitão foi, ao contrário, um exemplo do que deve ser feito, condenando a ilegalidade. É a única forma de tentar impedir que o exemplo contamine colegas e ex-colegas, governo e partido. O caso, aliás, pode acabar muito mal. O que se comenta resume-se, no fundo, a isto: a ex-secretária de Estado do Turismo poderia ter concedido benefícios de largos milhões a uma empresa com a contrapartida de ser contratada para funções de administração, depois de sair do governo. E, a ser assim, o problema não é apenas o de não respeitar o período de três anos de inibição que a lei fixa, para impedir portas giratórias e prevenir conflitos de interesses. O problema pode resvalar para pior. Não faço a menor ideia sobre se o que se tem dito é verdadeiro, ou não. Mas o que se tem comentado é o que se chama “pacto de corrupção”: tu dás-me isso, eu dou-te isto. Pode ser que o Ministério Público esteja como eu: também não sabe se o que se tem dito é verdadeiro, ou não. Mas, no caso do Ministério Público, pode haver o dever de investigar. Chegando aí, teríamos um caso de possível corrupção a ser investigado.

Já quando tomou partido por Pedro Nuno Santos, deixando recados e dúvidas quanto a Fernando Medina, Alexandra Leitão pôs chancela e alimento num longo folhetim (que ainda não se dissipou) em que os tambores do “pedronunismo” se alinham para os amanhãs que cantam. É sintomático também que o ambiente interno quezilento do PS pareça alinhado com outros sectores da falecida “geringonça” e suspire saudosismo por esse tempo. As cascatas de notícias como a que tem ferido o PS costumam ter fonte (e não fontes). Só os socialistas se conhecem realmente e sabem verdadeiramente o que se passa. Só eles podem decidir o que querem fazer com a maioria absoluta. Mas, a continuarem assim, ela não poderá durar. Para durar, é essencial que não sirvam a ideia de que é uma oportunidade para desfrutar (Oh! Que bom!), mas demonstrem que entenderam e assumiram a responsabilidade de governar bem o país, para responder aos problemas colectivos e melhorar o futuro de Portugal e dos portugueses.

3 Não há coisas mais corrosivas, em política, do que lutas intestinas e acusações de criminalidade económica ou de outros abusos no poder, que minam a reputação de políticos e da própria política. Em corrupção e aparentados, temos exemplos internacionais bastantes, que dispensam mais explicações. Acontecem à esquerda e à direita, consoante quem está no poder ou dispõe das influências que interessem aos corruptores. Recentemente, na área do grupo socialista, rebentou, com estrondo, um escândalo inédito no Parlamento Europeu, cujos efeitos nas instituições podem ampliar-se. E, para não irmos fora da Europa (ao Brasil, por exemplo), temos recentes evidências do poder demolidor da corrupção, em Espanha, França, Itália, Grécia. Há partidos que desapareceram. Não tiveram só crises; implodiram ou apagaram-se.

Os socialistas em geral têm de cuidar da forma como actuam, se não querem ser eles a deitar fora a maioria absoluta que os portugueses lhes deram. As lutas intestinas, além de serem um desperdício de energia e enorme factor de desgaste, demonstram que, nos partidos que as sofrem, o que move os seus actores não é uma ideia de país, um projecto nacional, o Bem Comum, uma visão do futuro colectivo, mas unicamente apoderarem-se do mando para alguém ou para um grupo. Isto afasta as pessoas comuns. Há quem goste de ir ao circo, mas normalmente os cidadãos não gostam de sacos de gatos no desempenho da política.

O Partido Socialista deveria tomar cuidado com sinais pantanosos e necessita de uma chamada muito poderosa do secretário-geral. Quem deve liderar o combate contra a corrupção? O governo, evidentemente. A justiça é só para tratar do caldo já entornado. E é bom que a justiça trate bem e depressa do caldo entornado, diversamente do que se arrasta na operação Marquês, entre outras.

4 Há assuntos mais sérios que devíamos estar a discutir, enquanto as lutas tribais e os casos judiciários nos ocupam dias, semanas e meses. Devíamos estar a discutir a política de habitação; devíamos estar a discutir a ilegitimidade de uma revisão constitucional para que ninguém pediu mandato, nem submeteu ao debate democrático prévio; devíamos estar a mobilizar-nos para o crescimento económico, que nos puxe para a frente da UE, em vez de para a cauda, com a Roménia a passar-nos em 2024; devíamos estar a discutir uma regionalização centralizadora, feita à socapa e a martelo; devíamos estar a discutir o facto de, na eutanásia, o PS ter sempre fugido da democracia, furtando à apreciação dos eleitores uma lei cada vez mais radical; devíamos estar a discutir a urgência das interconexões com a Europa na ferrovia e na energia, começando pela rede eléctrica; devíamos estar a discutir a qualidade da educação e a sua liberdade; devíamos estar a discutir a política de defesa e o reequipamento das Forças Armadas, à altura da sua missão e face aos novos desafios; devíamos estar a resolver os atrasos na justiça; devíamos estar a concluir e implantar a reforma eleitoral que, como a Constituição aponta, reforce a cidadania na democracia. E outras matérias ainda, na ciência, na cultura, na administração, no mar, na política externa, isto é, em tudo que verdadeiramente interessa para a política de Portugal e os portugueses.

Com o PS de maioria absoluta mergulhado em bulhas e em casos sucessivos, o que somos forçados a discutir todos os dias? Bulhas e casos. Esta agenda real da maioria é a ruína da política.