No fim do jogo com a França, Cristiano Ronaldo era a imagem da desilusão. Sozinho, cabisbaixo, o capitão português fazia lembrar um outro capitão trágico, o do Titanic. Um homem que, tal como Ronaldo, por muito tempo que esteja mergulhado em água gelada, também já não tem condições para disputar uma partida de futebol de alta competição.

Portugal deve muito a Cristiano Ronaldo. Há um país antes e um país depois de CR7. (Aliás, para ser preciso, há um país antes e um país durante CR7. Para o depois é preciso que CR7 saia de cena). Antes de Ronaldo éramos receosos, subservientes e contentados com pouco. Agora somos arrojados, orgulhosos e implacáveis. Queremos sempre mais. Ao longo dos anos, Ronaldo ensinou-nos a ser ambiciosos, a não condescender com a incompetência, a exigir rigor e profissionalismo, a premiar o mérito, e não a cunha. Ronaldo ensinou-nos a não aceitar Ronaldo.

No jogo FIFA, da Playstation, há uma modalidade com lendas do futebol, em que podemos ter na nossa equipa jogadores históricos como o Eusébio de 66, o Cruyff de 74 ou o Maradona de 86. Se estivéssemos a jogar com a selecção e convocássemos o Ronaldo de 2016, de certeza que se recusava a jogar na mesma equipa que o Ronaldo de 2024. Esse Ronaldo era tão competitivo que não ia admitir partilhar o campo com um tipo que parece estar lá por favor. Seria Ronaldo vs Ronabo. Manter o Ronaldo de 2024 por consideração é uma falta de consideração pelo Ronaldo de 2016.

Depois de tudo o que fez por Portugal, não podemos cobrar nada a Ronaldo. Mas o inverso é igualmente verdade, Ronaldo também não pode cobrar nada. Sobretudo, livres directos. Ronaldo é uma espécie de Sísifo, que em vez de empurrar uma pedra montanha acima, chuta uma bola à baliza com uma barreira a 9,15m. Uma tarefa que continua a realizar sempre da mesma forma, com os mesmos resultados.

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O paralelismo entre Ronaldo e o herói grego só seria perfeito se Sísifo, em vez de sozinho, tivesse a seu ao lado o Bernardo Silva, o Bruno Fernandes e o Cancelo com uma retroescavadora pronta para transportarem o calhau até ao cume e acondicioná-lo de forma a não resvalar outra vez.

É por isso que, neste caso, o castigo não é de quem executa a empreitada, é de quem assiste: esta geração de bons jogadores que ficou a ver. A perdida Geração de CR7 tenta. Com a míngua de golos de livre, Ronaldo já merecia que se organizasse um concerto de apoio. O Livre Aid.

Além do monopólio dos livres, a preponderância inusitada mantém Ronaldo tem na equipa observa-se no número absurdo de cruzamentos que fazemos à sua procura. Na realidade, trata-se de matrioskas de cruzamentos. Primeiro, há o cruzamento propriamente dito; depois, há o cruzamento dos dedos, as figas para que aquilo resulte, a bola vá ter com Ronaldo (nunca o contrário) e este consiga saltar e acertar-lhe com a cabeça, direccionando-a com força em direcção à baliza. Algo que Cristiano fazia com facilidade várias vezes por jogo e que agora não tem possibilidade de fazer. Se calhar porque é um ídolo com os pés enterrados no barro. Antes, chegava a marcar hat-tricks. Agora, o máximo que podemos esperar é que marque um geriátrick. Como é que chegámos aqui? Em que momento é que a selecção de todos nós passou  a ser a selecção do tipo que já não consegue dar nós?

Apesar de tudo, há muita gente que, por gratidão, considera que Ronaldo deve manter a titularidade, mesmo já não demonstrando capacidades para isso. Provavelmente, são pessoas que continuam a ter fantasias eróticas com a professora de inglês do 6.º ano, mas no estado em que ela está agora. O culto de Ronaldo é um sebastianismo do séc. XXI, embora o Sebastião referido não seja tanto o rei desaparecido em África, mas o que come tudo, tudo, tudo e não deixa nada para os outros.

Os maiores defensores de Ronaldo rogam-nos pragas. Que um dia havemos de ter saudades de Cristiano Ronaldo, amaldiçoam. É muito provável. Eu gostava de poder ter saudades dele. Só que, para isso acontecer, primeiro é preciso que Ronaldo se vá embora. No Atracção Fatal, o Michael Douglas também podia ter tido saudades da Glenn Close. Ela é que não deu oportunidade.