O compositor austríaco Franz Schubert (1797-1828) deixou apenas concluídos os dois primeiros andamentos da Sinfonia No. 8 em Si menor. Estes integram passagens líricas, que recordam as canções para piano (Lied) da autoria do compositor, a que se sucedem expressivas intervenções dramáticas da orquestra, tão caraterísticas do período romântico. Acontece que, segundo a tradição clássica, a sinfonia, como género, era composta por quatro andamentos e, por conseguinte, a Sinfonia No. 8 de Schubert ficou conhecida, na história da música, como Sinfonia Inacabada.
Após o fim de vida do compositor, foram várias as tentativas de encontrar um final para a Sinfonia Inacabada, tomando como ponto de partida os dois andamentos iniciais e um excerto para piano, ainda composto por Schubert, do terceiro andamento. Inaugurado o século XXI — a era da Informática e dos smartphones — coube à Inteligência Artificial a tarefa de retomar a obra que o engenho musical de Schubert deixou por concluir.
Ao longo de vários meses, um smartphone processou dezenas de obras do compositor, procurando elementos caraterísticos do seu estilo musical. Analisou os dois andamentos da sinfonia e, através de um algoritmo, formulou propostas para os andamentos que faltavam. Definiu métricas, sugeriu temas – enfim, criou música – e uma nova versão da Sinfonia Inacabada foi apresentada ao público, no último mês, em Londres.
Não é esta a primeira incursão da Inteligência Artificial no mundo artístico. Em 2016, foi editado o primeiro álbum musical de composição por Inteligência Artificial, que incluia peças para piano e orquestra sinfónica, compostas a partir da análise informática de 15.000 peças musicais de compositores como Bach, Mozart ou Beethoven. Outro algoritmo foi programado para imitar diferentes estilos de pintura, ou mesmo desenvolver novos estilos artísticos, tendo por base 81.449 pinturas disponíveis on-line, do séc. XIV ao séc. XX.
Não obstante o sofisticado algoritmo matemático que concluiu a Sinfonia Inacabada, o smartphone apenas gerou excertos melódicos, conjuntos apenas de notas musicais. A inteligência humana revelou-se, uma vez mais, indispensável, para estruturar a partitura. Na realidade, a Inteligência Artificial permanece incapaz de articular um conjunto dinâmico, de lhe atribuir um sentido. Dificilmente a Inteligência Artificial daria ao mundo os acordes da Eroica ou as cores de Van Gogh – a criatividade humana dificilmente será ultrapassada por um iShakespeare, um #rembrandt ou um www.mahler.com.
A arte é um mecanismo através do qual comunicamos experiências, sentimentos, emoções. Ora, uma máquina não têm emoções – não se alegra ao ouvir Papageno und Papagena, não se comove com Madama Butterfly. Os equipamentos eletrónicos apresentam, é certo, inúmeras vantagens – não têm fome, nem sede ou alterações temperamentais. Mas a música, para as máquinas, continua a ser simplesmente “bronze que soa ou um címbalo que retine” (1 Cor 13).
É certo que “o binómio de Newton [pode ser] tão belo com a Vénus de Milo” (Fernando Pessoa, Poesias de Álvaro de Campos), mas dificilmente um computador considerará belo qualquer dos dois, considerando que não dispõe de sentido estético. Quando contemplamos a Vénus de Milo ou a Vitória de Samotrácia, admiramos não apenas o drapeado do mármore, o naturalismo dos contornos que transmite movimento, mas também as estátuas incompletas, aquilo que para sempre se perdeu dessas efígies femininas e que a nossa imaginação procura reconstruir. Também a Sagrada Família, em Barcelona, sinfonia de pedra, floresta luxuriante de parábolas, hipérboles e catenárias, não é menos bela por se encontrar inacabada. As suas torres tentam, em vão, tocar o alto, porque o céu – a perfeição – é intangível.
O neurocientista António Damásio, a certo passo do seu livro A Estranha Ordem das Coisas, constata que “a história das culturas humanas é, em grande medida, a narrativa da nossa existência contra os algoritmos naturais através de invenções previstas por esses algoritmos” e, de facto, “a previsibilidade e a inflexibilidade que o termo algoritmo conjura não se aplicam aos feitos mais elevados da mente e do comportamento humano”.
A arte não se limita apenas a uma representação do mundo – envolve, além disso, uma transfiguração da realidade. É expressão subjetiva que resulta de um contexto, de uma história, de uma vivência. A arte é uma manifestação de humanidade, algo de intrinsecamente humano. Sem a criatividade humana, qualquer sinfonia permanece inacabada.
Médico; Assistente Convidado da Universidade de Lisboa