Ao entardecer, um céu de pesadas nuvens impregnava de cinza a cidade de Moscovo, tornando o ar irrespirável, quando avistou, ao fundo da avenida deserta, um vulto sombrio, transparente e sedutor. Susteve a respiração, marmoriamente lívido e petrificado de assombro, mas logo recuperou o sangue-frio e retomou o pulso – coração, se o tivesse, correria em galope. Foi a passo lesto que se aproximou do insinuante desconhecido, um cavalheiro alto de pele brônzea e fato cor de treva – como as nebulosas cinzas desse dia – as mãos calçadas de luvas negras. A sua aparência, porém, nada tinha de sobrenatural, parecia tão contemporâneo… O estrangeiro apresentou a sua saudação, declarou-se ao seu dispor e mencionou, num russo correto, que havia acabado de regressar a Moscovo naquela ocasião, desejando vorazmente voltar a percorrer a cidade.

Caminharam, lado a lado, entre as tílias do Largo do Patriarca. Ao descerem a Rua Tverskaya, o visitante reconhecia com agrado o centro da vida noturna e do entretenimento da cidade. Contemplava, embevecido, uma das ruas mais caras do mundo, todos os que ali vendiam e compravam, os cambistas abancados. Recordava os versos em que Pushkin descrevia os “candeeiros da rua, barracas, mansões, mosteiros, parques, farmácias e lojas de moda”. Na sua opinião, os mosteiros estavam a mais e, ao passar pelas “cruzes negras com bandos de gralhas” não deixou de sentir um calafrio. Chegados à Praça Vermelha, os olhos rebrilharam ao avistar a catedral de São Basílio, semelhante à pedra de jaspe e sardónica com as suas cúpulas merengadas de arco-íris em redor do trono, à vista como uma esmeralda. Perante a possibilidade de uma visita ao prodigioso monumento, o desconhecido apressou-se a declarar que as catedrais não eram edifícios da sua predileção.

Dirigiram-se, assim, à majestosa Torre Spasskaya, vermelha como a praça e encimada por uma estrela. Conta-se que aquelas vetustas paredes se revestem de um poder sobrenatural que, durante séculos, havia protegido o Kremlin da invasão de exércitos inimigos. À entrada, os dois transeuntes tiraram os chapéus, em sinal de reverência. Subiram, então, os incontáveis degraus que ascendiam até ao alto campanário, assomaram a uma das balaustradas de onde se avistava toda a Praça Vermelha. Lançando o olhar mais longe, procurando sondar a distância, entre a bruma do horizonte, via-se avançar um exército que marchava desde o Pacífico até ao mar Negro, envolto numa nuvem de cinzas que espalhava pelo mundo, tanta estrada, tantos caminhos e campos cheios de gente, várias nações aniquiladas, tudo isto te darei, se, prostrado, me adorares. Para que serve a alma, se posso ter o mundo?

No relógio da altiva torre, por três vezes soaram as orgulhosas badaladas: glória, glória, derrubados com mão poderosa, os inimigos, sem piedade, a terra, como a torre e a praça, vermelha também, mas de sangue. Vermelho de sangue, um dragão varreu o céu, detendo-se diante da mulher, rosa ferida pelos espinhos, senhora do martírio, aurora da paz que demora em chegar. Ainda as cinzas cobrem a terra, sepultando os caminhos, desfazendo as casas, destruindo as pontes, soterrando os vales, abatendo as colinas. Também, entre as cinzas, uma voz clama no deserto, de aflição, de desespero, clama por justiça. Esta súplica tenta, em vão, sobrepor-se ao tumulto de uma guerra, que procura obrigar um país a curvar-se como um junco derrubando-o sobre saco e cinzas.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR