Ao consultarmos o dicionário, podemos ler que a palavra alfabeto, de origem latina, é o nome dado ao conjunto ordenado das letras de um sistema de escrita. Com efeito, o abecedário da língua portuguesa tem como base o alfabeto latino, à exceção das letras k, w e y, que, com o Novo Acordo Ortográfico, passam a integrar os lusitanos carateres. Como bem assinalou o escritor português Vergílio Ferreira (1916-1996), “da minha língua vê-se o mar”. No passado, era o antigo mar Mediterrâneo, o Mare Nostrum, onde navegavam as galeras romanas e, antes delas, as birremes fenícias e as trirremes gregas. Porém, diante de uma pandemia longe de acabar, “até a voz do mar se torna exílio” (Sophia de Mello Breyner Andresen, Exílio).

As origens do alfabeto remontam ao Antigo Egito, na tentativa de ultrapassar a complexidade dos coloridos, belos e multiformes hieróglifos. Surgiu depois o alfabeto fenício, que deu origem à maioria dos alfabetos atuais: o grego, utilizado por Homero (c. séc. VIII a.C.) para compor a Ilíada e a Odisseia; o hebraico do Antigo Testamento; o latino de Cícero (106-43 a.C.) e de Vergílio (70-21 a.C.); o árabe d’As Mil e Uma Noites. Mais tarde, o alfabeto glagolítico, que os irmãos Cirilo (826-869) e Metódio (815-885) criaram para traduzir a Bíblia entre os povos eslavos, mas, revelando-se pouco prático, viria a ser substituído pelo alfabeto cirílico, em homenagem ao primeiro irmão mencionado.

A conhecida afirmação “somos todos gregos” é da autoria do poeta inglês Percy Shelley (1792-1822), casado em segundas núpcias com a autora do conhecido romance gótico Frankenstein, Mary Shelley (1797-1851). Efetivamente, as nossas leis, a nossa literatura, a nossa religião e a nossa arte têm as suas raízes na Grécia”. Mas também a palavra ‘alfabeto’, antes de passar pelo latim, teve a sua origem na Grécia Antiga, de onde trouxe as duas primeiras letras, ‘alpha’ (α) e ‘beta’ (β).

Hoje em dia, as letras gregas são utilizadas como símbolos em diversas áreas da ciência, sobretudo na Matemática. A mais conhecida de todas é, sem dúvida, a letra ‘pi’ (π), uma constante matemática, que representa a razão entre a circunferência de um círculo e o seu diâmetro e que assume o valor aproximado de 3,14. Em Medicina, por exemplo, as letras ‘kappa’ (κ) e ‘lambda’ (λ) designam dois tipos de regiões encontradas nos nossos anticorpos (imunoglobulinas).

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Por falar em Grécia, Heraclito (c. 535-c. 475 a.C.), filósofo pré-socrático, dizia que “ninguém se pode banhar duas vezes no mesmo rio” ou, por outras palavras, “nada perdura senão a mudança”. O vírus da Covid-19 não é exceção: todos os vírus, incluindo o SARS-CoV-2 sofrem alterações no seu genoma, um evento natural e previsível, na sequência da sua replicação e do seu processo evolutivo. Deste modo, surgem mutações que podem condicionar a transmissibilidade do vírus, a apresentação clínica e a gravidade da doença, ou comprometer a eficácia da vacinação, alterando, assim, o curso da pandemia.

Em maio deste ano, na sequência da pandemia que atravessamos, a Organização Mundial de Saúde (OMS) anunciou que as variantes preocupantes (VOC, do inglês variants of concern) do vírus SARS-CoV-2 passariam a ser designadas por letras do alfabeto grego. Esta decisão foi tomada após a consideração de outras alternativas, tais como a utilização de nomes da mitologia grega. O recurso a outra nomenclatura, com letras gregas, não pretende substituir os nomes científicos já existentes, que continuarão a ser utilizados na investigação científica, com números, letras do alfabeto latino e pontos finais.

Porém, a terminologia científica torna-se, por vezes, difícil de pronunciar ou reter na memória. Deste modo, o público em geral acabava por dar às novas variantes o nome dos países onde eram identificadas pela primeira vez. Já anteriormente as doenças infecciosas haviam adotado o nome do local onde foram diagnosticadas pela primeira vez. Foi o caso da brucelose, conhecida como “febre de Malta” ou da pandemia de gripe de 1918, que ficou conhecida como “gripe espanhola”, embora não seja possível determinar com exatidão a sua origem geográfica. No entanto, atribuir às diferentes variantes o nome do país onde foram encontradas pode submeter as populações desses países a atitudes injustas, discriminatórias, ou estigmatizantes – basta recordar o tom depreciativo dos comentários de Donald Trump quando se referia ao SARS-CoV-2 como “vírus chinês”.

Tendo esta preocupação em mente, a variante identificada pela primeira vez no Reino Unido (B.1.1.7) foi, assim, denominada variante ‘Alpha’. Seguiu-se a variante ‘Beta’, encontrada na África do Sul (B.1.351) e a variante ‘Gamma’ com origem no Brasil (P.1). A variante ‘Delta’ (B.1.617.2) com origem na Índia é atualmente a variante dominante no nosso país, devido à sua elevada transmissibilidade. A OMS identificou ainda variantes de interesse (VOI, do inglês variants of interest), que designou como variantes ‘Epsilon’ (Estados Unidos), ‘Zeta’ (Brasil), ‘Eta’ (vários países), ‘Theta’ (Filipinas), ‘Iota’ (Estados Unidos), ‘Kappa’ (Índia) e ‘Lambda’ (Perú).

No entanto, cada organização pode utilizar uma lista diferente, uma vez que cada uma utiliza critérios próprios na classificação das variantes identificadas. Nos Estados Unidos da América, por exemplo, o Centers for Disease Control and Prevention (CDC) classifica a variante ‘Epsilon’ como preocupante. Entretanto, no Nepal, surgiu a variante ‘Delta plus’ – a palavra plus já não é um termo grego, mas a versão inglesa da palavra ‘mais’, em português. Ora, a variante nepalesa corresponde à variante Delta ‘mais’ a mutação K417N, daí o nome ‘Delta plus’. Até agora, a ‘Delta plus’ foi identificada em mais de uma dezena de países, incluindo Portugal, justificação utilizada pelo Reino Unido para retirar Portugal da “lista verde”, no início de junho. Não obstante a sua classificação como variante preocupante pelo governo indiano, ainda não foi incluída nesse grupo pela OMS.

O aparecimento de novas variantes realça ainda mais a importância do programa de vacinação. Apenas com o cumprimento das medidas de saúde pública (uso de máscara e distanciamento social), a realização de testes laboratoriais de diagnóstico e a vacinação completa, conseguiremos travar o avanço da pandemia e a necessidade de recorrer ao alfabeto grego para classificação de novas variantes.