Quando desembarcou no porto de Balaclava, na Crimeia, equipado para documentar o conflito que opunha a Rússia à aliança entre o Império Otomano, o Reino Unido, a França e a Sardenha, Roger Fenton era um fotógrafo em via de consagração, mas com uma carreira curta: nascido em 1819, e com formação em direito e pintura, Fenton só aderiu à prática da arte fotográfica no início da década de 1850, já cumpridos os trinta anos de idade. Eram outros tempos. Privilegiava-se a versatilidade e ainda não triunfara a crença na especialização como condição necessária para o sucesso.
A reputação de Fenton começou a ser construída em 1851, quando realizou uma série de fotografias – calótipos, em rigor – de Moscovo, S. Petersburgo e Kiev, celebradas pelas suas qualidades técnicas e estéticas. Em 1853, ajudou a fundar a Royal Photographic Society. No ano seguinte foi nomeado fotógrafo do Museu Britânico e convidado para fazer os retratos da família real. Estes feitos terão despertado a atenção de Thomas Agnew, o negociante de arte de Manchester que o contratou para a reportagem na Crimeia.
Foi assim que, em meados de Fevereiro de 1855, Fenton subiu a bordo do HMS Hecla, com destino à península pontica. Levava dois assistentes e uma carroça que comprara a um vendedor de vinhos e convertera em laboratório fotográfico. Enquanto estiveram na Crimeia, os três dormiam e comiam no veículo, junto a cinco câmaras, variegadas substâncias químicas e setecentas chapas de vidro que seriam expostas e reveladas após o imprescindível tratamento com colódio, novo processo fotográfico pelo qual Fenton entretanto trocara a calotipia.
Para mover-se à vontade entre as tropas britânicas, Fenton precisava do aval do governo e da rainha. Agnew tratou do assunto e fez dele o fotógrafo oficioso da Coroa britânica, sem os deveres de Roger Nicklin, que estivera ao serviço do exército – e que desaparecera no naufrágio do Rip Van Winkle, cinco meses antes da chegada de Fenton –, mas com algumas restrições impostas pelo acordo tácito entre o patrono da missão e o poder político. Pelo menos é o que presumem alguns historiadores: em troca do livre-trânsito, Agnew e Fenton ter-se-ão comprometido a representar a guerra com uma perspectiva favorável à posição britânica, e contrária à imagem do conflito difundida pela imprensa, sobretudo por William Howard Russell, o lendário repórter do The Times – a ele voltaremos.
Na verdade, as fotografias de Fenton mostram-nos uma guerra atípica: paisagens, acampamentos e bivaques tranquilos, retratos de oficiais e de soldados e cenas de convívio de caserna. Os tópicos poderão ter sido determinados por outros factores, como a natureza comercial do projecto, as limitações técnicas da fotografia da época (agravadas pelo clima adverso) ou a própria sensibilidade vitoriana do autor. O que é certo é que Fenton se absteve de documentar as batalhas e os cadáveres e toda a devastação e sofrimento que definem uma guerra, sujeitando o portefólio à presunção do pecado da propaganda.
A esta constatação veio juntar-se a suspeita de que Fenton manipulou a sua fotografia mais conhecida, Valley of the Shadow of the Death, realizada a 23 de Abril de 1855, perto do local onde se dera a desastrada Carga da Brigada Ligeira cantada por Tennyson: «Half a league, half a league, / Half a league onward, / All in the valley of Death / Rode the six hundred». Em boa verdade, há duas versões de Valley, e são as diferenças entre elas que suscitam as dúvidas. Qual das fotos foi tirada primeiro? Terá Fenton manipulado o cenário entre as duas tomadas de vista? As balas de canhão caíram sobre a estrada ou foram ali postas pelo fotógrafo e os seus assistentes? Em 2007, o documentarista norte-americano Errol Morris decidiu investigar e tentar esclarecer estas questões.
Morris consultou as fontes primárias (como os textos epistolares de Fenton), falou com os autores ainda vivos que mencionaram a hipótese de fraude, foi à Crimeia procurar o lugar onde foram realizadas as fotografias e contactou peritos forenses, solicitando-lhes que estudassem a orientação da câmara, as sombras e as luzes, e as posições dos elementos das duas imagens. Após um longo processo, Morris fixou, por fim, a cronologia das fotografias e concluiu que Fenton, com efeito, manipulou a segunda, a mais reproduzida na actualidade. Os argumentos são consistentes, mas há que ressalvar que qualquer conclusão sobre esta matéria estará sempre restrita ao campo das probabilidades. A ciência, apesar de ser útil para a historiografia, ocupa-se de hipóteses e não tem muito a dizer sobre a verdade.
Fenton regressou a Londres no dia 26 de Junho de 1855, exausto e acometido por uma crise de cólera. Deixou a carroça, mas levou consigo mais de trezentos negativos que, à chegada, foram impressos, expostos e vendidos em edições limitadas, com algum sucesso. Pouco tempo depois, a guerra terminou e o interesse dos compradores esmoreceu.
Em 1862, após doze anos de dedicação, Fenton abandonou a fotografia, leiloou o seu equipamento, e regressou ao Direito. Morreu em 1869, esquecido. Tinha 49 anos. Contudo, o tempo fez-lhe justiça e aclamou-o como um dos mais importantes fotógrafos oitocentistas. As suas contribuições técnicas e estéticas são inestimáveis e algumas das imagens que nos deixou, como Valley, e, a minha favorita, The Queens Target (1860), uma das mais extraordinárias fotografias do século XIX – porque antecipa, em várias décadas, o já bem avançado século XX da fotografia modernista –, ficarão durante muito tempo inscritas na História.
Independentemente de todas as considerações e hipóteses atrás referidas, as fotografias que Roger Fenton fez na Crimeia não causaram, de facto, quaisquer embaraços ao governo britânico e talvez tenham mesmo servido para acalmar a opinião pública, cujo descontentamento, em Janeiro de 1855, levara à demissão do primeiro-ministro George Hamilton-Gordon, responsável pela entrada do Reino Unido na aliança contra a Rússia. A principal causa da insatisfação popular era, como já foi dito, a coluna de William Howard Russell no The Times.
Russell foi a antítese de Fenton. Enviado pelo jornal para cobrir o conflito, retribuiu com relatos implacáveis sobre a logística e os combates. Os britânicos, que ao princípio foram partidários do envolvimento na guerra, iam adoptando, à medida que o The Times publicava as reportagens do seu emissário, uma posição mais hostil. Apesar da situação marcial, a imprensa não deixava de exercer o seu papel, indiferente a «uniões nacionais» ou outras intrujices do género, que, a coberto das boas intenções, têm como função disfarçar ou mesmo justificar a prepotência do Estado. Numa altura em que vivemos, ao que parece, uma guerra que só existe na cabeça dos apedeutas que tomaram conta da sociedade, a lição do The Times deveria ser estudada por todos os editores de imprensa e comunicação audiovisual.
Russel e o jornal foram, como é óbvio, pressionados pelo governo, e boicotados, no terreno, pelos oficiais britânicos. No entanto, resistiram. O governo caiu, enquanto o The Times se manteve firme na intenção de descrever, com rigor, a guerra e as condições em que viviam as tropas. Os jornalistas cumpriram o seu papel de contrapoder e, segundo consta, não exageraram na narração dos factos: quando Florence Nothingale, alertada pelas crónicas de Russel, foi para o hospital de Scutari, perto de Constantinopla, encontrou soldados feridos e moribundos num ambiente insalubre, infestado de pulgas e ratos, sem sabão ou toalhas. As instalações sanitárias eram manifestamente insuficientes para os dois mil homens que ali tinham sido deixados à sua sorte e os víveres escasseavam. Morria-se muito mais de doenças infecciosas, como a disenteria e a febre tifóide, do que dos ferimentos causados pelo fogo de artilharia. Graças à determinação de Nightingale, as condições foram substancialmente melhoradas em poucos meses. A audácia da imprensa salvou vidas.
Na presente circunstância histórica, testemunha da autodestruição da comunicação social e do apelo à censura por um coro de pseudo-especialistas em epidemias com demasiada visibilidade mediática, a sinopse da cobertura jornalística da guerra da Crimeia e da postura de William Howard Russel assume-se quase como uma fábula moral. Passaram 170 anos. Esperava-se que a liberdade de expressão estivesse mais consolidada em sociedades que se dizem abertas. Não está. Pelo contrário: assistimos a uma regressão inquietante das garantias civis. E a imprensa não é uma vítima da conjuntura: é algoz.
Os média portugueses já nos habituaram à dualidade de critérios com os diversos extremismos e é sabido que, enquanto inquirem certos governos e movimentos com o empenho dos zelotas, têm por outros uma condescendência aflitiva. Além do mais, no último ano, não só se revelaram indisponíveis para questionar a política do medo à qual fomos submetidos, como contribuíram de forma activa para a execução dessa mesma experiência de controlo social.
Neste contexto, não nos surpreende que a maioria dos jornalistas tenha permanecido impávida quando os burocratas cozinhavam a Carta de Direitos Humanos na Era Digital, estranho documento anunciado como um agregado de autoproclamadas virtudes, mas que afinal está bem carregado de um ingrediente tóxico, o infame artigo 6º. O que teria acontecido a William Howard Russel se tivesse sido levado a uma comissão destacada para determinar se uma «narrativa» é «susceptível de causar um prejuízo público, nomeadamente ameaça aos processos políticos democráticos, aos processos de elaboração de políticas públicas e a bens públicos»? Como teriam sido tratados os seus artigos se houvessem sido submetidos à vigilância da «desinformação», esse termo novilíngue muito apreciado por quem que se julga dono da informação? Talvez não estivéssemos hoje a falar dele.
Claro que há uma experiência mental muito mais interessante: após um ano de propaganda, manipulação das audiências no sentido do pânico, adulteração de estatísticas, interpretações delirantes de novas leis, chamamento à denúncia popular, e manutenção de «verificadores de factos» tendenciosos e administrados por ignorantes nas matérias em causa, como se sairia a comunicação social portuguesa de um exame definido pelas normas do artigo 6º? Muito mal, suspeitamos. Os média seriam o primeiro alvo de uma aplicação rigorosa e independente dos princípios da Carta. Não deve acontecer, pois os aliados do regime costumam estar eximidos de fiscalização. Mas, pelo menos por prudência, já que o dever e a responsabilidade estavam ausentes em parte incerta, deveriam ter estado mais atentos.
Não aconteceu, e foi preciso um alvoroço nas redes de comunicação distribuída (vulgo redes sociais), em consequência do aviso dado pelo Notícias Viriato, espaço de informação marginalizado pelos órgãos dominantes e o único que parece ter-se preocupado com o assalto à liberdade de expressão, para que o debate chegasse, timidamente, aos jornais e às televisões. A comunicação social portuguesa tem-se portado como Roger Fenton na guerra da Crimeia: obediente ao poder e indiferente à censura. Por vezes, não se inibe de manusear uma ou outra «bala» para melhor compor o quadro. A diferença é que Fenton não tinha obrigações deontológicas, regia-se pela liberdade criativa e deixou-nos uma obra formidável. A nova geração de jornalistas só deixará páginas de vergonha.