Normalmente as crises viram os equilíbrios do avesso. Assim foi com a Primeira Guerra Mundial, para cujo desenlace os EUA foram indispensáveis. Quando Wilson chegou a Paris para negociar a paz o presidente norte-americano era a esperança de um mundo novo. Na mesma linha foi após a Segunda Guerra Mundial que o continente europeu perdeu de vez o predomínio económico e militar. A partir de 1945, EUA e URSS dividiram o mundo à semelhança do que as nações europeias fizeram com a África, na Conferência de Berlim que terminou em 1885. O século XX iniciou-se com um ascendente norte-americano e terminou com o domínio absoluto de Washington.

Mas se o passado foi favorável à América, o presente pode ser bem diferente. Vivemos outra crise após a qual podemos despertar para uma realidade que desconhecemos. Uma em que Pequim se torne preponderante e mais forte que Washington. Em que Pequim exerça uma influência sobre as outras nações e seja encarada como um exemplo a seguir. Em que certos aspirantes a tiranos se inspirem para derrubar as democracias ocidentais.

Claro que o processo não será automático e instantâneo, mas gradual. A influência e o poderio norte-americano também aumentou com o decorrer dos anos, através de uma transferência gradual do poder da Europa para os EUA. Há quem entenda que o nascimento da superpotência norte-americana ocorreu em 1898 quando os EUA e a Espanha assinaram um tratado de paz, no qual os nossos vizinhos perderam Cuba, Porto Rico e as Filipinas. Hoje poucos recordam o facto, mas este foi o primeiro de muitos que se repetiram nas décadas seguintes. As nações europeias foram sendo substituídas pelos EUA com uma energia económica capaz de projectar força militar e impôr soluções diplomáticas e políticas. O mesmo processo, mas a favor da China e em detrimento dos EUA, pode acentuar-se nos próximos meses.

A transformação da China na grande potência mundial, antecipando o que apenas se projectava através do crescimento do PIB chinês, depende essencialmente de duas circunstâncias: em primeiro lugar da evolução do Covid-19. Este surgiu na China que foi a primeiras a cair mas que também será a primeira a levantar-se. A vantagem de se ser o primeiro a sair de uma crise está em se ser o primeiro a chegar ao ‘lado de lá’. De ser o primeiro a experimentar a nova realidade e a retirar desta os novos proveitos. A esta circunstância temos de somar o respeito que a China tem adquirido na forma como está a levar a melhor sobre o novo vírus. Em Janeiro o Ocidente criticou e foi condescendente com o modo como o governo chinês lidou com o Covid-19. Mencionou-se a incompetência inicial e até se avançaram razões culturais para explicar a disseminação fácil deste coronavírus na China. Dizia-se que no Ocidente seria diferente. Viu-se. Hoje a China é encarada como um exemplo a seguir e ajuda a Itália com material e suporte técnico que os países europeus recusam fornecer por não se encontrarem devidamente preparados. Ora, se o respeito é indispensável para que um país se afirme como potência preponderante, as autoridades chinesas estão a conquistá-lo. Roma, que já tinha aderido à nova rota da seda, não se esquecerá da generosidade de Pequim.

A segunda circunstância decorre do endividamento das economias ocidentais. Estou sempre a voltar a este tema que é essencial. A dívida é como um cancro. Destrói por dentro sem que se perceba. Contribuiu para arrasar impérios como o romano e o espanhol e também o domínio português no Índico. E vai dar cabo da hegemonia ocidental.

É verdade que a China também se está a endividar. A sua economia comete muitos dos erros das economias ocidentais. No entanto, e devido à sua maior dimensão, a economia chinesa tem mais margem que as ocidentais para se continuar a endividar. Daqui a uns anos (décadas) quando o endividamento chinês atingir o seu pico a conversa pode ser outra. Até lá, não. Até lá Pequim vai dar cartas e pode começar ainda este ano. Depois de vencido o Covid-19 será tempo de o Ocidente enfrentar dois desafios: o da dívida e o do autoritarismo inspirado no sucesso chinês. Só vencida a dívida os EUA e a Europa recuperarão a influência que tiveram. Apenas evitado o autoritarismo, o Ocidente fará jus à sua herança filosófica e lidará de igual para igual com o novo Império do Meio.

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