A Itália vai ter um governo de partidos “anti-sistema” que, como agora é típico desse género de partidos, entendem que o “sistema” é a União Europeia, o Euro e as políticas de imigração europeias. Além disso, a Liga e o Movimento Cinco Estrelas são também russófilos. O “sistema”, porém, não parece preocupado. Aqui e ali, alguns comentadores bem pensantes rasgam as vestes. Mas a chanceler Angela Merkel já fez constar que está cheia de boa vontade para colaborar com o novo poder italiano. A elite europeia julga que arranjou um instrumento para domar os movimentos “anti-sistema”: o próprio “sistema” contra o qual se revoltam.
Em 2000, quando o primeiro partido “anti-sistema” — anti-europeu e anti-imigração – integrou uma coligação de governo na Austria, a UE ainda reagiu com sanções. Desde então, houve o governo do Syriza na Grécia, e a maioria social-comunista em Portugal, e a elite europeia descobriu que a moeda única e um dos maiores mercados do mundo bastam para domar as feras mais selvages. O Syriza e a “geringonça” portuguesa começaram por pôr tudo em causa, do Euro à austeridade, para serem hoje os melhores alunos da Comissão Europeia. Mas que esperar de países, como é o caso de Portugal, onde 70% das exportações seguem para o mercado único, as empresas alemãs são o segundo maior empregador (depois do Estado), e a adopção de uma qualquer nova moeda imporia quase de certeza uma desvalorização imediata de 30 a 40% em relação ao Euro? Que pode Bruxelas recear de um país assim?
Até no caso do Brexit, a UE já conseguiu que seja Londres quem se consome e se divide com a ideia de perder acesso ao mercado único e de resolver o imbróglio da Irlanda do Norte fora do quadro europeu. É por isso que a elite europeia não teme o governo italiano, nem a nova maioria espanhola de radicais e de separatistas, nem os nacionalismos da Hungria ou da Polónia. A convicção é que nenhum deles, por mais dissonantes, se atreveria a enveredar por um caminho que só os poderia levar à ruína e à discórdia. Bruxelas pode permanecer assim meramente técnica, e politicamente agnóstica.
É curioso: a UE foi um projecto político que os seus fundadores, nos anos 50, quiseram que começasse economicamente. Desde então, o projecto está a tornar-se cada vez mais uma espécie de jaula financeira e económica, em que ninguém está contente, uns por uma razão e outros por outra, mas de que ninguém se atreve a sair: os nórdicos detestam as transferências, mas têm medo, fora do euro, de moedas fortes pouco favoráveis às suas exportações; e os meridionais abominam a austeridade, mas receiam, em alternativa, moedas fracas fatais para o seu poder de compra.
Kant acreditava que até uma raça de diabos, desde que fossem inteligentes, perceberiam as vantagens de uma boa constituição. É imaginável uma UE só com governos nacionalistas, populistas e radicais, todos contrários aos valores da integração europeia, mas mesmo assim assustados pela perspectiva de abandonar o Euro e o mercado único? Será então indiferente termos um dia a Frente Nacional a governar em Paris ou a Alternativa para a Alemanha em Berlim, tal como agora parece não importar que a Liga e o 5 Estrelas governem em Roma?
É esse então o sentido histórico da integração europeia, a anulação da política pela economia? Acontece que este pode não ser a melhor conjuntura para tirar conclusões. As economias europeias crescem, o desemprego recua, o crédito é barato. Não é preciso fazer reformas, e bastam cativações para os défices diminuírem. Romper com o “sistema” tem agora um preço óbvio. Mas noutras circunstâncias, irão os populistas e os nacionalistas continuar a não ousar, e poderá a UE fingir que não faz mal haver governos populistas ou maiorias com comunistas?