Profundamente devastada e dividida após as guerras mundiais, a Europa teve na União Europeia (UE) a ambição de um projecto de paz duradouro para o continente. Durante 77 anos essa paz foi conseguida, com tensões é certo, com momentos críticos, com erros, mas o equilíbrio dentro das portas europeias foi conseguido muito pelo papel central da Aliança Atlântica. A Guerra da Ucrânia de 2022 marca o fim deste tempo e o regresso dos conflitos entre Estados à Europa.

Urge assim perguntar que papel para uma NATO na Europa que, após a queda do muro de Berlim, tem andando à procura de novos desígnios, tendo sido mesmo considerada por Emanuel Macron com estando “brain dead” apelando o líder francês a uma autonomia estratégica e geopolítica europeia independente da organização do atlântico norte e do Estados Unidos.

O projecto imperialista de Vladimir Putin, iniciado com as intervenções militares na Georgia em 2008 e na Crimeia em 2014, que não encontraram no Ocidente, resposta adequada, consolidou-se com a invasão da Ucrânia em Fevereiro de 2022, constituindo esta invasão uma ameaça frontal à segurança europeia. E a Europa, surpreendentemente para muitos, e acima de tudo para Putin, respondeu rápida e alinhada. Este foi o primeiro sinal concreto de que algo tinha mudado na forma como os países europeus e em particular os membros da União Europeia, entendem doravante a sua defesa comum.

Os segundos sinais de enorme significado político foram a alteração da política externa alemã e a adesão à Aliança Atlântica da Finlândia e da Suécia, este último país com mais de 200 anos de uma neutralidade que lhe permitiu escapar a dois conflitos mundiais.​ Quanto à Alemanha, percebeu finalmente os limites do seu Wandel durch Handel com a Rússia e da sua Ostpolitik e no dia 27 de Abril de 2022 o Bundestag aprovou uma resolução autorizando Berlim a enviar armamento pesado para a Ucrânia. De referir que uns meses antes a ministra alemã da Defesa, Christine Lambrecht, tinha afirmado que o governo alemão tinha uma linha vermelha e que não entregava armas para zonas de guerra. Em 3 de Junho de 2022, os deputados alemães concordavam em criar um fundo de 100 bilhões de euros para a defesa, alcançando a meta que a NATO estabeleceu para seus membros: destinar 2% de seu produto interno bruto (PIB) aos seus gastos militares até 2024.

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Neste contexto é de extremo relevo ter-se concluído no dia 29 de Junho de 2022, a aprovação, pelos membros NATO, do seu novo “conceito estratégico”, para os próximos 10 anos. Salientando a dimensão da UE como parceiro principal da NATO, o documento afasta-se da “cooperação” promovida em anos anteriores e coloca a Rússia como ameaça directa e significativa à segurança, paz e estabilidade euro-atlânticas. Esta filosofia é oposta à adoptada em 2010 na Cimeira de Lisboa, que destacou a importância da cooperação com a Rússia, de forma a criar um espaço comum de paz, estabilidade e segurança. Nessa altura, a Aliança afirmou que não era uma ameaça para Moscovo e enfatizou a importância de construir uma «aliança estratégica de reciprocidade» . A invasão da Ucrânia tudo mudou.

O texto que suporta a renovada estratégia da Aliança tem mais elementos que merecem atenção; o enfoque no mediterrâneo e no sul e não só no leste como flancos a defender, o que é relevante para Portugal, a referência à segurança marítima, também relevante para Portugal, a necessária aposta na inovação tecnológica e nas dimensões Ciber e Espaço e last but least a referência à China para a qual a NATO pretende “…reforçar a resiliência e aumentar a preparação contra tácticas coercivas da China e tentativas de dividir a Aliança”.

Anteriormente à produção deste documento estratégico da NATO mas já após a invasão da Ucrânia pela Rússia, os dirigentes da União Europeia tinham aprovado a Bússola Estratégica, um documento definidor das prioridades no domínio da segurança e da defesa da UE até 2030, documento este que focava numa eventual autonomia estratégica da Europa, uma Europa dita “protectora”, uma UE em que os membros agem militarmente quando os Estados Unidos se recusam a fazê-lo, uma ideia controversa e perigosa na medida em que o efeito pratico de muitas das acções previstas para esta autonomia europeia seria alienar os EUA e a NATO das equações europeias de defesa, fragilizando a Europa numa altura em que isso não pode de todo acontecer.

A União Europeia pode e deve ter uma visão e estratégia geopolítica diferente dos EUA, é natural que assim seja e é mesmo saudável que assim seja, dados os sinais de algum afastamento que os norte americanos têm apresentado, privilegiando o espaço do Indo-Pacífico em detrimento da Europa. Objectivamente em relação à China isso deve acontecer, continuando a UE a cooperação comercial com Pequim, aliando-se para fazer face aos desafios globais como as alterações climáticas, os conflitos regionais e a promoção do desenvolvimento do continente Africano, mas sendo assertiva e apontando criticamente a autocracia iliberal Chinesa, o desrespeito pelos direitos humanos e as práticas predatórias de imitação tecno/industrial, reforçando, por outro lado, a necessária soberania estratégica dos países europeus nos sectores tecnológicos e energéticos que são críticos para assegurar a autonomia europeia e a promoção dos seus valores e interesses no Mundo.

A melhor maneira de os europeus assumirem maior responsabilidade pela sua segurança é investirem no seu relacionamento com os Estados Unidos, especialmente por meio da NATO. Isso deve ir muito além e de forma muito diferente do que está previsto na bússola estratégica. Os países europeus devem insistir em exercer maior influência na Aliança Atlântica, criando um pilar europeu dentro desta e, complementarmente, investindo mais na sua contribuição para a organização de defesa transatlântica. Afectar 2% do PIB orçamental, sendo 20% afectos à modernização e investimento em capacidades associadas as Forças Armadas nacionais de cada estado-membro é um começo obrigatório.

A Aliança Atlântica e a União Europeia resultaram de uma revolução ideológica na política europeia que substituiu as ideologias nacionalistas e imperialistas por um conjunto de valores liberais e democráticos, valores esses que temos de preservar. A NATO constitui o único enquadramento em que os Estados Unidos contribuem para a defesa europeia, para um efectivo exército europeu e para a deterrence nuclear, numa natural complementaridade com os objectivos económicos, financeiros e sociais da União Europeia, permitindo que o seu papel seja factor de equilíbrio e estabilidade entre os muitas vezes díspares interesses da Alemanha e da França e o alinhamento destes com os interesses da Grã-Bretanha, possibilitando que todos tenham estratégias que garantam a coesão da Europa e a contenção da ameaça russa, nunca esquecendo a inclusão, na medida das suas capacidades, de Estados de menor influência. Quaisquer outras ideias perigosamente criativas que passem por exércitos únicos europeus e autonomias estratégicas de inspiração neogaullista são só isso mesmo; idealismos criativos sem qualquer respaldo real.