É possível imaginar perguntas simples na política de hoje? Não necessariamente. Por um lado, como as pessoas mais aborrecidas do mundo não cessam de nos recordar, temos demonstrado alguma dificuldade em estabelecer valores comuns (categoria que já incluiu grandes conquistas sociais, como “a vida”, “a família”, “a liberdade” ou “o horror às sogras”). Por outro, e talvez igualmente importante nos efeitos que teve para o debate, porque hoje é evidentemente mais fácil transformar qualquer tema numa questão – ou pior, numa causa.

 A interpretação bondosa da União Europeia aponta-a como o fórum ideal para discutir os grandes assuntos, as questões (causas?) que atravessam as nações e precisam de ser resolvidos pela massa crítica coletiva. Sendo verdade, é certamente uma verdade incompleta. A União, não obstante os líderes de turno, é sobretudo o produto de um concerto desafinado entre as nações, um grupo heterogéneo de cidadãos e um corpo burocrático próprio.

É uma construção atípica, nem sempre funcional, encarregada de discutir quase tudo sem cativar a atenção dos interessados. Mas é – à falta de melhor – o que temos, e o que temos precisa rapidamente de originar uma opinião sobre um grande tema: a China.

Sobre a China, a União Europeia tem tido quase todas as posições. Só nos últimos dois anos, os europeus estiveram prestes a embarcar num acordo de investimento – daqueles em que se negociou praticamente uma década como tornar a UE mais chinesa e a China mais próspera –, até que a pandemia tornou clara a necessidade de alguma contenção perante um governo que é claro no desejo de reformar o sistema internacional em seu favor, mesmo que tal implique alguma coerção diplomática dos seus parceiros e vizinhos.

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Num livro de 2021, China’s Civilian Army: The Making of Wolf Warrior Diplomacy, um jornalista da Bloomberg, Peter Martin, detalha a história diplomática da China desde 1949, explicando como sucessivos governos desde Mao e Zhou Enlai procuraram reafirmar a China no plano internacional através de uma postura intencionalmente percebida como agressiva pelos seus diplomatas. Se na década de 50 o propósito era legitimar o maoísmo e recuperar o respeito estrangeiro, a prosperidade económica das décadas seguintes e, recentemente, a visão grandiosa de Xi Jinping para o papel da China no mundo levaram a que a política externa chinesa tomasse uma página do velho livro das tecnológicas americanas: move fast and break things.

Essa diplomacia agressiva contribuiu grandemente para a mudança na perspetiva europeia. Com a pandemia, o potencial parceiro comercial evidenciou a sua capacidade de dominar os assuntos domésticos, adotando medidas na época qualificadas como draconianas pelo Ocidente, e disposto a usar o Twitter como arma de combate aos governos europeus.

Para além do acordo de investimento, que não chegou a existir, a primeira vítima dessa mudança de tom nas relações foi a Huawei, que parecia capaz de dominar o 5G e acabou banida de alguns países europeus. Entretanto, os termos do debate parecem ter-se movido ainda mais em desfavor da China, no meio das tensões com Taiwan, com alguns países e personalidades influentes a defender uma postura reciprocamente agressiva e até preventiva, como se a União Europeia pudesse corrigir os seus erros em relação à Rússia numa situação substancialmente diferente.

Em todo o caso, esta semana Rishi Sunak veio esclarecer que a “era de ouro” nas relações entre o Reino Unido e a China tinha terminado. Perante os protestos da semana passada, a presidência Biden tem como posição oficial “não comentamos”, o que permite aprofundar o desanuviamento dos últimos meses enquanto protege os manifestantes de serem considerados agentes desestabilizadores apoiados pelo estrangeiro.

E a União Europeia? Scholz esteve na China no início do mês e tentou levar os direitos humanos para as declarações públicas, mas não abdicou de uma comitiva de empresários alemães. Macron esteve com Xi na reunião do G20 há duas semanas, para falar da Ucrânia e garantir que a França continua disponível para receber empresas chinesas e cooperar economicamente. Esta proximidade não é bem vista a leste, onde a Lituânia tem defendido uma posição especialmente intransigente – e sido castigada por isso.

Charles Michel, presidente do Conselho Europeu, estará hoje na China para se encontrar com Xi. Numa altura em que não é clara a posição europeia – ou a existência de uma posição europeia – sobre a China e será difícil fugir a perguntas desconfortáveis sobre os protestos que ainda decorrem, Michel tem a oportunidade de encarnar o concerto desafinado e produzir um momento politicamente relevante. A circunstância seria difícil para qualquer político, mas desperdiçar a oportunidade para relançar a agenda europeia seria imperdoável.