A Via Sacra é uma antiga e piedosa devoção cristã, que recorda a paixão e morte de Cristo na Cruz. Todos os anos, na sexta-feira santa, o Papa costuma presidir à sua realização no Coliseu romano, onde, nos primeiros séculos do Cristianismo, muitos cristãos foram martirizados. Este ano, por razão da pandemia, esta celebração penitencial ocorreu na praça de São Pedro, mas sem a presença multitudinária de fiéis. Segundo a tradição, foi nesse lugar que o primeiro Papa foi crucificado e sepultado, precisamente no sítio onde agora se ergue a basílica que tem o seu nome.

De modo análogo ao que aconteceu a Jesus de Nazaré, injustamente condenado à morte por Pôncio Pilatos, depois de o ter sido pelo Sinédrio, os primeiros cristãos eram igualmente julgados por um tribunal civil e, depois de confirmada a sua condição cristã, executados. Também agora, a perseguição aos cristãos se faz por meios judiciais, nomeadamente por força da iníqua lei da blasfémia, que deu cobertura legal à condenação à morte da católica paquistanesa Asia Bibi, por ter bebido água de um poço que era usado por muçulmanos. Depois de anos no corredor da morte, aguardando a sua execução, foi possível a sua libertação, por pressão da comunidade internacional e das organizações de defesa dos direitos humanos. Para esse efeito, foi preciso que o Supremo Tribunal do Paquistão se pronunciasse pela sua inocência, que era óbvia, e um país estrangeiro lhe desse, bem como à sua família, asilo.

O penoso e dolorosíssimo escândalo da pedofilia na Igreja católica, que não pode ser desvalorizado nem esquecido, levou à condenação criminal e excomunhão eclesial de inúmeros clérigos, desde sacerdotes até bispos e cardeais. Felizmente, parece já estar definitivamente ultrapassado, graças a Deus, à atitude firme dos Papas São João Paulo II, Bento XVI e Francisco, e também ao papel desempenhado pela comunicação social. Mas, à sua conta, há quem agora procure perseguir a Igreja, nomeadamente caluniando alguns dos seus principais dignitários e, depois, pressionando os tribunais para que, mesmo sem provas, os condenem a penas infamantes.

Foi o que aconteceu a dois cardeais que foram, recentemente, injustamente condenados por suspeitas relacionadas com a pedofilia. Com efeito, o Cardeal George Pell, ex-arcebispo de Sidney e de Melbourne, e ex-prefeito da Secretaria para a Economia da Santa Sé, foi condenado, em primeira instância, em Dezembro de 2018, a seis anos de prisão efectiva, sentença que veio a ser confirmada em Agosto do ano passado. Por sua vez, o Cardeal Philippe Barbarin, arcebispo de Lyon, foi condenado a seis meses de prisão, com pena suspensa, alegadamente por não ter denunciado às autoridades alguns casos de abusos sexuais de menores, que se supunha serem do seu conhecimento. Felizmente, em Janeiro deste ano, o Cardeal Barbarin, que tinha recorrido da sentença, foi absolvido pelo tribunal de segunda instância. E, no passado dia 7, segunda-feira santa, o Supremo Tribunal de Justiça da Austrália declarou inocente o Cardeal George Pell, depois de treze meses de reclusão.

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Nem toda a imprensa portuguesa se regozijou com esta boa notícia. Por exemplo o Público, citando a Lusa, limitou-se a referir que o “Supremo da Austrália anula a condenação do cardeal George Pell por abuso de menores”, que atribui a uma mera insuficiência formal, ou seja, “a prova não estabeleceu culpa com o nível de evidência exigido”. Desta forma ardilosa, não se afirma a inocência do purpurado, mas apenas que não se conseguiu provar que fosse culpado, invertendo o ónus da prova. Deste jeito malicioso, contraria-se o princípio da boa-fé e nega-se a presunção de inocência, que exige que não se condene quem não se provou culpado de nenhum delito.

Tem que se lhe diga esta forma preconceituosa de noticiar a sentença do Tribunal Supremo australiano, porque uma coisa é anular uma condenação e outra, muito diferente, é provar a inocência de alguém. Como é sabido, vários dos implicados no caso Casa Pia não chegaram a ser julgados, porque já tinham prescrito os crimes de que foram acusados, mas de que não eram inocentes. Que estes implicados não tenham sido condenados, apenas por uma questão processual ou formal, não quer dizer que não tivessem culpa, como é óbvio. Pois bem, não foi este o caso do Cardeal Pell, porque se provou que os factos que lhe eram atribuídos não foram provados, tal como claramente se disse na sentença definitiva do Supremo Tribunal de Justiça. Mas, pelos vistos, alguma imprensa não gostou, talvez por desejar a confirmação da injusta condenação do cardeal.

Apesar da notícia do Público datar do dia 7, às 7h e 30m da manhã, e depois ter sido actualizada às 15h e 30m, não refere alguns aspectos que já tinham sido noticiados pelas Vatican News, às 7h 51m desse dia, e que são relevantes. Com efeito, segundo informação transmitida por esta agência de notícias, que foi amplamente difundida pela imprensa mundial, mas que o Público omite, a decisão judicial que pôs termo a este processo foi deliberada “por unanimidade” dos sete juízes do Supremo Tribunal de Justiça da Austrália. Se é relativamente insignificante o número de magistrados que participaram nesta decisão, que por ser definitiva é especialmente importante, o mesmo não se pode dizer em relação à unanimidade do seu veredicto, pois expressa que nenhum deles teve qualquer dúvida em relação à inocência do Cardeal George Pell.

Outro facto, também omitido pelo Público, diz respeito a um dos falsos denunciantes, que o referido jornal informa apenas que “morreu após o início do processo”. Sendo jovem, não era expectável a sua morte, pelo que seria de esperar que se referisse a causa do inesperado falecimento, que era conhecida e tinha sido mencionada no despacho da Lusa, a que o Público teve acesso e cita, como fonte da sua notícia. Contudo este jornal, que copiou a primeira parte da frase, censurou a sua conclusão: “vítima de consumo excessivo de estupefacientes”. É óbvio que esta informação – que o Observador reproduziu, mas o Público silenciou – era pertinente, na medida em que afecta a credibilidade do falso denunciante, pelo que a sua omissão é tudo menos inocente.

Talvez tenha sido a pressão mediática que levou à condenação, na primeira e segunda instâncias, do Cardeal Pell. Como se escreveu no Observador, a sentença que absolve o cardeal australiano também critica o tribunal que confirmou a sua condenação na primeira instância, porque “não teve em consideração ‘a possibilidade razoável de a ofensa não ter ocorrido’ e de haver ‘dúvida razoável quanto à culpa’ de George Pell.” Aliás, não é preciso ser criminalista para perceber que a acusação era inverosímil: “Para os juízes, o relato da vítima não bate certo com três elementos: em primeiro lugar, Pell costumava cumprimentar os fiéis após a missa de domingo na escadaria em frente à catedral, processo que demorava vários minutos, o que impossibilitaria o cardeal de estar na sacristia no momento em que os dois jovens abandonaram a procissão do final da celebração; em segundo lugar, a prática católica, que era seguida na catedral de São Patrício, mandava que o arcebispo estivesse sempre acompanhado no interior da igreja enquanto estava com as vestes litúrgicas, uma vez que se encontrava ainda em celebração; e, por fim, o movimento de entradas e saídas na sacristia de uma catedral após a conclusão de uma missa, com várias pessoas a arrumarem o local e os objetos usados na celebração, impossibilitariam que o arcebispo e os dois menores estivessem sozinhos na divisão.”

Não é de agora esta atitude tendenciosa em relação ao Cardeal Pell, nem é exclusiva do Público que, nesta questão, se limitou a transcrever afirmações caluniosas de outros meios de comunicação social. O jornalista David Marr, do Guardian Australia, chegou a escrever: “George Pell fez uma guerra ao sexo, mesmo quando abusava de crianças”. Palavras que o Público não só repetiu, como escolheu para título do seu artigo de 26 de Fevereiro de 2019, em que acusa o cardeal australiano, agora ilibado, de ter “uma postura conservadora e inflexível em questões relacionadas com o sexo, como a homossexualidade e a contracepção, opondo-se-lhes completamente”.

O Presidente da Conferência Episcopal australiana, o arcebispo Mark Coleridge, regozijou-se pelo reconhecimento da inocência do ex-arcebispo de Sidney e de Melbourne, ao mesmo tempo que reiterou o empenho da Igreja na segurança dos menores e a sua solidariedade para com as vítimas de abusos sexuais. O próprio Cardeal George Pell, que sempre protestou a sua inocência e que a provou na mais alta instância judicial, também reafirmou a sua constante proximidade com as vítimas de abusos sexuais e o seu empenho em denunciar os membros do clero que sejam responsáveis por tais crimes.

Em todo este caso, a Santa Sé colaborou sempre com a justiça australiana. O Papa Francisco, em vez de reter o Cardeal Pell em Roma, onde estava a salvo e gozava de imunidade diplomática, por ser perfeito de um importante dicastério da Santa Sé, permitiu, como era aliás desejo do purpurado, que se demitisse dessas funções, para poder regressar à Austrália e aí se defender das falsas acusações que lhe tinham sido feitas. Esta atitude do Cardeal Pell foi de grande coragem porque, mesmo inocente, sabia que já tinha sido sentenciado na praça pública e que as instâncias judiciais, bem como uma certa imprensa, não tinham sido alheias a essa iníqua condenação. De facto, inicialmente o não foram, embora depois a verdade e a justiça tenham prevalecido.

Como a Ecclesia noticiou, o Papa Francisco, na celebração da Missa na Casa de Santa Marta no próprio dia 7, horas depois de o Cardeal Pell ter sido absolvido pelo Supremo Tribunal da Austrália, fez uma alusão indirecta a este caso: “Nestes dias de Quaresma, vimos a perseguição que Jesus sofreu e como os doutores da Lei se encarniçaram contra Ele: foi julgado sob encarniçamento, com hostilidade, sendo inocente. Gostaria de rezar hoje por todas as pessoas que sofrem uma sentença injusta, por hostilidade.”0