1“A virtude da civilidade” é o título de um livro marcante, mas entretanto ostensivamente esquecido, de um grande sociólogo norte-americano da Universidade de Chicago: Edward Shils (1910-1995), The Virtue of Civility: Selected Essays on Liberalism, Tradition and Civil Society, Edited by Steven Grosby, (Indianapolis, Liberty Fund, 1997, contendo ensaios do autor de 1972 a 1995). Um olhar semelhante, mas em registo historiográfico, é apresentado por Keith Thomas (nascido em 1933, Fellow of All Souls College, Oxford) em In Pursuit of Civility: Manners and Civilization in Early Modern England (Yale University Press, 2008).
Há vários anos que tenho estes livros nas minhas prateleiras dedicadas a autores e/ou temas que considero marcantes, mas pouco reconhecidos. Também é certo que não os revisitava há algum tempo, possivelmente por razões felizes: a civilidade não parecia estar directamente em causa nas democracias do Ocidente. Receio ter de dizer que a civilidade voltou chocantemente a estar em causa — e que esta é hoje de novo uma ameaça premente.
2Os exemplos recentes e presentes de ameaça à civilidade democrática infelizmente abundam. Poderíamos citar o atrevimento do primeiro-ministro da Hungria em defender publicamente uma “democracia iliberal” contra a “democracia liberal”.
Trata-se certamente de um revelador lapso intelectual — que atribuo ao facto de ele ter estado pouco tempo em Oxford, quando ainda era, ou queria ser, um gentleman. Não é pequeno lapso, a cujo significado intelectual voltarei mais à frente, e ilustra a enorme gravidade do discurso tribal que cresce no Ocidente.
3O Brasil é evidentemente o caso mais próximo (ainda que certamente não o menos vulgar). A campanha presidencial em curso tem sido simplesmente inqualificável (escrevo antes do debate previsto para as nossas 0 horas de segunda-feira). Os dois principais candidatos insultam-se da forma mais imprópria: um acusa o outro de bandido, o outro acusa o primeiro de ladrão; agora parece que já se fala de pedofilia e canibalismo!!!
Se esta linguagem fosse utilizada num debate num Gentlemen’s Club, os dois oradores seriam imediatamente repreendidos pelo empregado de mesa, ou pela recepcionista — e seriam avisados solenemente de que a falta de maneiras não era tolerada no Clube.
4O caso mais grave, todavia, vem dos EUA, uma das mais antigas democracias modernas do Ocidente, ainda que por vezes continuando a exibir alguns complexos coloniais.
Um pouco à semelhança do Brasil e da Hungria, a culpa da incivilidade nos EUA não recai apenas num dos lados do espectro político. A ala esquerda do partido democrático vem há muito promovendo uma agenda radical e sem maneiras contra a liberdade da sociedade civil e tentando impor através do estado códigos de conduta monistas e autoritários, chamados woke, ameaçando a liberdade de expressão.
Surpreendentemente, o partido republicano — nos bons velhos tempos conhecido por Grand Old Party, GOP — vem respondendo com uma agenda monista autoritária de sinal contrário, em profunda ruptura com a tradição do GOP, designadamente a de Ronald Reagan (1911-2004) e de Abraham Lincoln (1809-1865).
O mais grave, no entanto, é a chocante falta de maneiras do actual líder republicano que prega abertamente a “teoria” marxista/terceiro-mundista da luta de classes, insulta os adversários como se fossem inimigos (provavelmente “inimigos de classe”) e mantém um inadmissível silêncio sobre o arruaceiro assalto ao Capitólio de 6 de Janeiro do ano passado.
A sua falta de maneiras nunca seria admitida num Gentlemen’s Club — e já não falo de um London Club, (que o sr. Trump poderia acusar de “elitista, colonialista e snob”), mas simplesmente de um Washington DC Club, como por exemplo o Cosmos Club: aqui, o empregado de mesa imediatamente nos apresenta gentilmente um cartão com as regras do clube, basta que falemos ligeiramente mais alto do que é civilmente apropriado.
5O que estamos a assistir é ao crescimento selvagem de tribalismos rivais, de esquerda radical e de direita radical, que igualmente ameaçam a democracia liberal do Ocidente. No plano puramente intelectual, ambos os tribalismos são produto e expressão de mal-entendidos sobre a natureza da democracia.
Não é aqui o lugar para dissecar a natureza desses mal-entendidos. Mas não pode ser evitada a referência a Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) e ao seu entendimento monista e autoritário da democracia como governo do povo ou da “vontade geral”.
Rousseau foi entusiasticamente citado pela esquerda, em particular a esquerda revolucionária de Robespierre, Marx e Lenine — que, em nome do “povo”, inventaram os conceitos de “democracia popular” e de “ditadura do proletariado”, por contraste com “democracia burguesa, parlamentar ou oligárquica”. Mas também está na origem, na direita revolucionária, do peculiar conceito de “estado totalitário” de Mussolini e de “estado total” de Carl Schmitt — também por contraste com a “democracia burguesa, parlamentar e elitista”.
Todos eles subscreveram o mal-entendido sobre a definição do melhor regime como a melhor resposta à pergunta “Quem deve governar? Um, alguns, ou todos reunidos em colectivo?”. Por via desta pergunta equivocada, todos eles defenderam o estado com uma “vontade única” em nome do povo e/ou da nação, cujos dissidentes seriam, por definição, “inimigos do povo e/ou da nação”.
Por outras palavras, todos subscreveram o tribal e primitivo entendimento da política como conflito entre “amigo e inimigo” — que hoje está de novo patente nos casos que referi acima, entre muitos outros. [Uma versão extrema deste entendimento, que devia servir de alerta para os tribalismos ocidentais, está hoje patente nas ditaduras do sr. Putin na Rússia e do sr. Xi Jinping na China].
6Simplesmente acontece, todavia, que não há “vontades únicas”, nem do povo, nem da nação, nem de um simples clube de gentlemen. Há sempre uma pluralidade de pontos de vista, que temporariamente podem obter a maioria em eleições livres e leais. Mas essa maioria será sempre passageira e deve por isso poder ser ordeiramente substituída por uma ulterior maioria rival — a qual, enquanto não ganha a maioria, tem a crucial missão de ser Leal Oposição no Parlamento ao poder da maioria entretanto vigente.
Para que esta alternância pacífica e ordeira entre diferentes pontos de vista possa ocorrer, é crucial a observância de regras gerais de boa conduta, de boas maneiras ou de civilidade — a que em regra chamamos governo representativo limitado pela lei, ou Estado de Direito, ou democracia constitucional, e que ostensivamente estão ausentes nas “democracias populares” da Rússia e da China.
7Por outras palavras, a democracia ocidental não é sobre o chamado “governo do povo”, tão do agrado da esquerda e da direita revolucionárias; é sobre o governo das boas maneiras — o que a distingue dos fanatismos iliberais. Foi sobre esta virtude da civilidade que escreveram memoravelmente Edward Shils e Keith Thomas, que citei no início deste artigo.