Os ministros, os deputados do PS e obviamente os partidos de esquerda que suportam o Governo abriram a caça a Centeno. Entrámos na segunda parte da peça “virámos a página da austeridade”. Os efeitos das escolhas que se fizeram começam a ser visíveis na falta de investimento em matérias sérias como a Saúde. Como já não se pode continuar a fazer de conta, tem de se encontrar um culpado.
Nada melhor que o ministro das Finanças, pelo que parece pelas reacções de alguns deputados do PS e do Bloco de Esquerda, andou a concretizar um Orçamento do Estado na clandestinidade. Parece que ninguém o aprovou nem ninguém acompanhou a sua execução.
O início desta nova parte de “virámos a página da austeridade” está no sucesso do défice de 2017, os cerca de 1% do PIB. A primeira reacção coube ao deputado socialista João Galamba. “Em 2018 e 2019 o país dispensa brilharetes”, afirmou em entrevista ao Jornal Económico. Basta cumprir o orçamentado, disse. Estava dado o tom da condenação de mais progressos na redução do défice público. A líder do Bloco de Esquerda Catarina Martins substituiu o “país” por Mário Centeno. Na entrevista ao Público diz: “não podemos deixar que, para que Mário Centeno possa brilhar, os serviços públicos fiquem às escuras”.
Mas é ao ministro da Saúde que pertence a frase mais assassina contra o ministro das Finanças. “Somos todos Centeno”. Palavras do ministro Adalberto Campos Fernandes num Governo apoiado pelo PCP e pelo Bloco de Esquerda, partidos formalmente contra a velocidade com que se está a reduzir o défice público. Nem quando Pedro Passos Coelho era primeiro-ministro com maioria absoluta ao lado do CDS houve ministros que se atrevessem a assumir a ditadura das Finanças como o fez o actual ministro da Saúde.
O ministro das Finanças percebeu obviamente o presente envenenado que lhe deu o seu colega de Governo e replicou esta quarta-feira dia 11 de Abril: “Não somos todos Centeno, somos todos Adalberto”. As más relações entre os dois ministros não podia ser mais transparente. Uma réplica que deu no Parlamento quando, imagine-se, estava a fazer o papel que sempre no passado coube aos ministros da Saúde
Há décadas que a Saúde é uma dor de cabeça para o Ministério das Finanças. Foi sempre da João Crisóstomo, em Lisboa, onde funciona o Ministério, que apareceram as mais significativas derrapagens orçamentais. De tal maneira que, quando a pasta não era assumida por quem soubesse de Finanças – como aconteceu com Paulo Macedo ministro do Governo de Pedro Passos Coelho – existia um secretário de Estado que acompanhava de perto o tema – como foi o caso de Francisco Ramos, no governo PS.
O que é difícil encontrar na memória é um caso em que o ministro das Finanças parece ser também o ministro da Saúde. Adalberto Campos Fernandes teve a habilidade de atirar os problemas da Saúde para cima do seu colega e esta semana assistimos ao inédito caso de Mário Centeno a fazer Adalberto.
Todos os ministros podiam aliás fazer o mesmo. O ministro da Cultura, por exemplo, em vez de dizer que se “virou a página da austeridade mas não a das dificuldades” poderia também ter dito “somos todos Centeno” e obrigar o ministro das Finanças a explicar porque houve tão pouco dinheiro para distribuir pelas artes. O ministro da Educação Tiago Brandão Rodrigues tem igualmente condições para atirar para cima de Centeno a responsabilidade de não estar a dar, aos professores, a requalificação nas carreiras que os sindicatos reivindicam. Tal como o ministro dos Transportes Pedro Marques pode dizer que é por “sermos todos Centeno” que os investimentos públicos estão atrasados, o ministro da Administração Interna Eduardo Cabrita apontar para Centeno quando o criticam por atrasos no pagamento das requalificações na polícia ou o ministro do Trabalho Vieira da Silva dizer que é em Centeno que reside a culpa de não se poder ir mais longe nas pensões ou até mesmo na legislação laboral. E por aí adiante. De tal maneira que chegamos à absurda possibilidade de podermos viver com um Governo composto por Centeno e António Costa.
Nesta altura já todos devem ter compreendido bem o que quis dizer a presidente do Conselho de Finanças Públicas Teodora Cardoso, quando em Novembro de 2017 comparou a actual gestão orçamental com a que se fazia no tempo do Estado Novo com Salazar. “O ministro das Finanças é que decidia [no tempo de Salazar] se havia dinheiro ou se não havia, se não havia dinheiro cortava, pura e simplesmente. Nós já o ano passado tivemos uma espécie de reprodução disto, com as cativações”, afirmou Teodora Cardoso. Na altura ninguém percebeu e choveram criticas contra a presidente do CFP. Agora já muita gente deve ter percebido.
De repente, alguns membros do Governo e o Bloco de Esquerda descobriram que se pagou um preço para conseguir, ao mesmo tempo, a redução do défice público e reposição de salários na função pública, eliminação dos cortes nas pensões e o fim da sobretaxa de IRS. O preço foi aplicado no gabinete do Ministro das Finanças através dos papéis, que ficaram na gaveta, sem a assinatura de Centeno com a autorização para gastar. As famosas cativações é que garantiram o sucesso que temos hoje no controlo do défice orçamental.
E ninguém – no Governo, no PS, no Bloco de Esquerda, no PCP e nos Verdes – pode agora dizer que não sabia que a despesa pública estava a ser controlada à boa e velha maneira de Salazar, no Ministério das Finanças, com Mário Centeno a não autorizar os gastos. Todos sabiam, todos foram cúmplices desta escolha. Não podem agora transformar o ministro das Finanças no bode expiatório de uma estratégia que foi escolhida por todos: dar mais rendimento aos funcionários públicos, aos pensionistas e um pouquinho à população em geral e tirar por via do investimento e despesas operacionais que só se descobre a falta que fazem a prazo. O problema é que esse “a prazo” chegou agora e seria saudável para o país que quem fez essas escolhas assumisse as responsabilidades da “alternativa à austeridade”, em vez de atirar as culpas para o ministro das Finanças.
É graças ao “brilharete”, que transforma Centeno em réu, que se conseguiu reduzir o défice mas isso teve como preço aquilo que agora estamos a ver de forma mais dramática na Saúde e nos transportes públicos. É graças ao “brilharete” de Centeno que conseguimos sair do Procedimento por Défices Excessivos com mais rendimento, a resolução do Banif e com a capitalização da CGD. É graças ao “brilharete” de Centeno que o Estado conseguiu pagar ao FMI, reduzir o custo da dívida e continuar no mercado. É graças ao “brilharete” de Centeno que o Bloco de Esquerda e alguns deputados do PS podem agora exigir ou pedir que se seja mais moderado na redução do défice público.
Podemos discordar da estratégia que foi seguida. Nomeadamente, podemos considerar que se devia ter feito uma reposição mais lenta dos rendimentos para conseguir, ao mesmo tempo, aumentar também o investimento público na reposição de equipamentos na Saúde ou nos Transportes. Não podemos é escolher uma estratégia e não assumir as consequências dela. Não se pode comer e ter o bolo ao mesmo tempo.
É de uma enorme hipocrisia “abrir a caça a Centeno” quando todos sabiam bem o que se estava a fazer. Esta segunda parte do “virámos a página da austeridade” mantém infelizmente as mesmas marcas de populismo e infantilização dos portugueses. Num lamentável e triste teatro que é inimigo do desenvolvimento e da maturidade política e financeira dos portugueses.