Se calhar não é assim tão óbvio, mas os acontecimentos agora expostos não me levam a qualquer tipo de demissão. Muito pelo contrário. Este escândalo é principalmente ocasião para ir ao fundo de mim, da Igreja a que pertenço. Antes de mais, e pelo teor do que agora é posto a nu, a Igreja tem no seu seio o pior dos piores: homens e mulheres que ultrapassaram todas as barreiras de decência e moralidade. Nada que o humano não me tenha dado a conhecer ao longo dos tempos, em mim e fora de mim.

Acontece que o fenómeno religioso que é a Igreja não cabe em nenhuma categoria. Será à luz dessa originalidade que se há-de julgar tudo isto agora tornado público. A pergunta é feita por Jesus, depois de ter interrogado os discípulos acerca do que os homens diziam que Ele era: E vós, quem dizeis que eu sou?

Cão, gato e periquito dizem saber o que é a Igreja. Compreende-se que todos tenham uma opinião sobre esta matéria. A razão deste alargado opinar está em que o assunto “Deus” interessa a todos. Desde que o homem é homem procurou um sentido para a sua existência. O homem, confrontado com o limite de ser temporal, quis ligar-se ao intemporal. Melhor quis re-ligar-se a esse ponto fora do tempo, Infinito, Deus. Desde então são milhares as escadas que se construíram para chegar ao tal ponto fora do tempo. Podemos até dizer que cada homem tem a sua escada. As três grandes religiões juntam em torno de si grande parte delas. Mas há toda uma proliferação de escadas, ruelas e escadinhas que pretendem alcançar o Infinito.

Esta movimentação milenar de baixo para cima, do finito ao infinito, leva-nos a olhar para a essência das religiões e verificar que uma delas, o Cristianismo, possui um factor que nenhuma das outras tem: prescinde das escadas feitas por mãos humanas porque é o próprio Infinito que, não deixando de ser Deus, se põe ao alcance de todos, fazendo-se homem. Num determinado ponto da História aconteceu o que todas procuraram alcançar com os seus meios. Já não é o finito a tentar alcançar o Infinito, mas é o próprio Infinito que desce ao finito, pondo-se ao alcance de todos. O caminho para se chegar a Deus é o próprio Deus: “Eu sou o Caminho, a Verdade e a Vida! Ninguém vem ao Pai se não por mim!” (Jo 14, 6-7). Resta perguntar: o que foi verdade há 2.000 anos será também verdade para mim?

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Que Deus é o caminho também hoje, vêmo-lo pelo facto que está na base da instituição da Igreja: “Tu és Pedro e sobre ti edificarei a minha Igreja!” (Mt16,18). Que a Igreja seja o Caminho é uma grande pretensão, é verdade. Mas como poderei negá-la sem que, com isso, ceda à tentação de limitar o próprio Deus? Quem sou eu para dizer que o caminho deveria ter sido outro?

E agora vem o nódulo da questão. Cristo funda a Igreja sobre aquele que o traíra umas horas antes, o que significa que assume que a obra tenha pés de barro. Assim, qualquer objeção à Igreja que venha do “barro”, do limite, não procede! Por mais paradoxal que isto possa ser, o limite é ocasião tanto do mais como do menos. No caso dos abusos sexuais, seguramente ocasião de menos, muito menos. No caso de uma obra como a da Madre Teresa ou de Francisco de Assis, ocasião de mais, muito mais. Esta é a realidade, e dela não nos podemos, obviamente, demitir.

Deus poderia ter oferecido outro caminho? Imagino que sim, mas o facto de ter sido este o método eleito obriga a pensar a sua razoabilidade. Tento pôr-me, como posso, no lugar dos abusados pela Igreja. Não consigo. Como não consigo Auchwitz, ou os escombros da Turquia, ou da Ucrânia. Como não consigo entrar na pele daqueles homens e mulheres com quem me cruzo e que vejo terem dor, em tantas “prisões”, em tantos “hospitais”…

E não consigo ser João Paulo II no atentado mortal, nem Joana d’ Arc na fogueira, nem carnes no Coliseu romano, nem os 11 apóstolos todos martirizados. Também não consigo imaginar o martírio das duas missionárias no Sudão Sul, vítimas de uma emboscada, em 16 de Agosto passado, a irmã Maria Daniel Abut e a Irmã Regina Roba Luate. O que me aproxima de todos estes é a experiência que faço dos meus limites. E aqui está a razoabilidade da escolha de Pedro: sei na primeira pessoa que como ele somos capazes do melhor e do pior.

E ao evocar os mártires, não estou a dourar a pílula ou a tentar encontrar uma sublimação ou um sentido espiritual para o sofrimentos destas inocentes vitimas da mediocridade da minha Igreja. Também não quero comparar cruzes. Por alguma razão Jesus nunca pediu a demissão de ninguém, mas sim que, doentes ou sãos, O seguissemos: “Se alguém quiser acompanhar-Me, negue-se a si mesmo, tome diariamente a sua cruz e siga-Me.” (Lc 9, 23)