Em debate parlamentar, o BE anunciou a sua intenção de extinguir os exames nacionais do 9.º ano – que qualifica de “anacronismo”. Poder-se-ia ignorar a ligeireza com que o BE “pensa” a educação, neste episódio associando erradamente os exames nacionais à retenção e exclusão social. Contudo, nos últimos anos, ficou provado que ignorar certos devaneios do BE não é um luxo a que nos possamos dar. Porque, fazendo parte da geringonça, o BE já evidenciou o seu poder de influência, por vezes até em confronto com a posição inicial do governo – como aconteceu na redução do valor máximo das propinas, que por pressão do BE passou de não-assunto a facto consumado. E porque, vale a pena lembrar, a extinção das provas finais do 4.º ano aconteceu por iniciativa legislativa do BE, aprovada com efeitos imediatos na primeira manhã de vida do actual governo e da geringonça – deixando um vazio na avaliação externa e lançando o caos em pleno ano lectivo 2015/2016. Portanto, há que levar a ameaça do BE a sério. E, como tal, importa desde já explicar o porquê de a sua iniciativa ser um erro.
Primeiro, é falacioso associar a existência de exames nacionais com aumentos da retenção escolar. Infelizmente, a retenção em Portugal sempre foi muito elevada, com ou sem exames nacionais nos correspondentes ciclos do ensino básico. Felizmente, até tem melhorado nos últimos 10 anos. Por exemplo, no 3.º ciclo do ensino básico (que é o que aqui está em causa), a taxa de reprovação evoluiu muito positivamente, sempre com exames nacionais: era de 18,4% em 2006/2007 e de 8,5% em 2016/2017. Ora, o problema da retenção tem outra raiz: existe uma extensa literatura, incluindo uma importante recomendação (2015) do Conselho Nacional de Educação (CNE), que aponta para a existência de uma “cultura de retenção” nas escolas portuguesas – que importa sem dúvida contrariar mas que é independente da existência de exames nacionais. Aliás, em parecer recente sobre a avaliação externa (2016), o CNE apontou explicitamente à manutenção dos exames no 9.º ano.
Segundo, é falso que os exames sejam um factor específico de ansiedade nos alunos. A OCDE, de resto, até já dedicou atenção ao assunto, procurando perceber se demasiada avaliação afecta o desempenho e o bem-estar dos alunos. As respostas a que chegou, baseadas na extensa base de dados do PISA 2015, são esclarecedoras. Para começar, é ilusória a percepção de que existem muitas avaliações externas e/ou padronizadas – são pouco usadas pelas escolas e, no caso português, neste momento os exames do 9.º ano são os únicos exames que os alunos fazem no seu percurso do ensino básico. Depois, a ansiedade causada pela avaliação existe de facto, mas tem que ver com a realização dos testes normais e com o receio de ter más notas – segundo a OCDE, 59% dos alunos dizem-se preocupados antes da realização de testes, 66% receiam obter más notas e 55% ficam nervosos com os testes mesmo quando se sentem bem-preparados. Por fim, nem a ansiedade nem os desempenhos dos alunos parecem estar relacionados com a frequência das avaliações – ou seja, menos exames ou testes não reduzirá a ansiedade, porque esta existirá sempre que houver algum tipo de avaliação em sala-de-aula.
Terceiro, se olharmos para o contexto internacional, é comum a existência de exames ao nível do 3.º ciclo. Sim, alguns países optam por provas de aferição – isto é, provas que servem apenas para monitorização do sistema e que não têm influência na progressão dos alunos. Mas são muitos os que têm exames nacionais: de acordo com dados de 2015 da OCDE, aqui recuperados pelo CNE, para além de Portugal, é assim na Bélgica, Dinamarca, Estónia, França, Alemanha, Irlanda, Holanda, Polónia e Noruega. E, acrescente-se, em Portugal apenas se avaliam duas disciplinas (português e matemática), opção minoritária visto que nos restantes países são cobertas mais disciplinas (por vezes, 5 ou mais). Ou seja, no contexto europeu, nada no caso português evidencia algum tipo de excesso nas avaliações.
Quarto, a monitorização do desempenho dos alunos em avaliações externas, como exames nacionais, é fundamental para orientar as políticas públicas. São essas avaliações que indicam a evolução dos alunos, que diagnosticam problemas a corrigir no sistema educativo, que permitem compreender o impacto de reformas e medidas políticas – por exemplo, alterações no currículo nacional. É graças às avaliações externas que hoje temos dados e investigação em Portugal que nos ajuda a perceber o que funciona e o que não funciona. Pôr em causa esta importante ferramenta é, portanto, muito mais grave do que um mero erro político: é colocar o sistema educativo a navegar às escuras, sem se poder guiar por evidências e sujeito apenas à força da influência dos agentes políticos, que tentam impor o seu enviesamento.
Muitas outras evidências existem para sublinhar o papel importante das avaliações externas num sistema educativo – por exemplo, nos domínios do incentivo à aprendizagem ou da prestação de contas das escolas. Mas o ponto fundamental aqui é mesmo político: a forma como o BE propõe alterações estruturais ao sistema educativo é irreflectida, irresponsável e movida por uma visão ideológica que não encontra adesão nas evidências internacionais. Até há uns anos, isso era uma mera curiosidade do debate parlamentar. Agora, é uma ameaça séria às políticas públicas.