O Globe Theatre, antigo teatro de Shakespeare em Londres, anunciou que vai encenar uma nova peça sobre Joana d’Arc em que a protagonista é não-binária e usa os pronomes they/them. Como a Donzela d’Orleães às tantas se veste de rapaz para ir combater ingleses, o transactivismo diz que, então, é porque não era uma mulher, mas sim um homem. Imediatamente, houve protestos por parte de feministas que consideram que se trata do apagamento de um símbolo da luta das mulheres por direitos iguais aos homens, já que Joana d’Arc desafiou convenções sociais e de género para mostrar que uma mulher tinha a mesma valia que um homem. Vai-se a ver e cai tudo pela base, uma vez que Joana d’Arc afinal era um rapaz. As feministas queixam-se da misoginia desta apropriação iconográfica. Uma reclamação que tem tudo para crescer, principalmente desde que uma figura pública com o estatuto de JK Rowling resolveu entrar na refrega  com essa nova forma de protesto social que é o retuíte. Ou pode ter sido o like, não sei bem.

(A verdade é que não é a primeira vez que a roupa masculina de Joana d’Arc é motivo de polémica. No século XV, foi razão para a considerarem herege, no século XXI é razão para a considerarem homem. Os beatos de hoje em dia continuam obcecados com as opções estéticas de Joana d’Arc.)

A grande questão é: esta nova peça enquadra-se no âmbito da liberdade artística do autor ou, pelo contrário, extravasa esses limites e é uma reescrita da história, ainda para mais com consequências nefastas para um grupo tradicionalmente diminuído como é o das mulheres? Quer dizer, na realidade, essa é a segunda grande questão. A primeira é “o que é que este tema interessa?”, mas isso é porque eu sou um homem hetero patriarca cis branco (agora ligeiramente bronzeado) ocidental sexy europeu privilegiado, e estas querelas entre feministas e transactivistas não me afectam, pois estou repimpado cá em cima a ver a arraia-miúda à bulha.

Por um lado, a fita das feministas é embirração. Estão a focar-se num pormenor secundário. Numa história sobre uma pessoa que convence toda a gente a ir para a guerra porque um anjo lhe apareceu a dizer que ia ser giro, considerar-se que o que é inverosímil é a pessoa ser trans, parece-me um preciosismo. Até porque a figura de Joana d’Arc já foi alvo de variadas interpretações artísticas, desde uma sindicalista na Chicago de 1920 até uma ET predadora sexual, e ninguém se aborreceu por aí além. E nem sequer é a primeira vez que é levantada a questão da ambiguidade sexual de Joana d’Arc numa peça. Ingrid Bergman, quando explicou a George Bernard Shaw porque é que não protagonizaria a sua peça Santa Joana, disse-lhe: Eu gostava da outra Joana, a que era uma rapariga. A sua é um rapaz.

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No entanto, desta vez não é apenas a Ingrid Bergman que não aprecia, as feministas todas estão mesmo a levar a mal. Queixam-se que o não-binarismo era um conceito desconhecido no século XV. E nisso têm razão. Faz tanto sentido dizer que Joana d’Arc era um rapaz porque se vestia de rapaz, como dizer que era um atum porque ia para a guerra dentro de uma espécie de lata de conserva – que também ainda não tinha sido inventada em 1430. Há quem considere que este anacronismo já é ir longe de mais. No fundo, argumentam que é como se, numa nova versão do Frei Luís de Sousa, D. Madalena de Vilhena descobrisse que o Romeiro é D. João de Portugal, o marido que ela julgava morto em Alcácer Quibir, após consultar a sua conta do Instagram @ninguém_niguém_afinal_sou_eu. Mas, mesmo um equívoco cronológico tão significativo tem de estar protegido pela liberdade artística do autor.

Por outro lado, Joana d’Arc é um símbolo feminista histórico, uma adolescente que desafiou as limitações que a sociedade medieval impunha às mulheres, alcançando uma preponderância e uma notoriedade que só estavam disponíveis aos homens. As feministas consideram que transformar Santa Joana em São Joana é roubar-lhes uma personagem na sua já longa luta contra a opressão sexista. Acham que é essa a motivação ideológica da peça.

Para que lado me inclino? Para nenhum, como é óbvio. Como já aqui referi, enquanto superpredador nesta cadeia alimentar que é o heteropatatipatriarcado um-cis-dois, borrifo-me nisto. Mas, se tivesse de me pronunciar, diria que a posição transactivista do autor da peça tem os seus méritos. Sejamos francos, aquilo que Joana d’Arc fez em vida não é, de todo, feminino. Estamos a falar de iniciativa, coragem, capacidade, talento para a guerra, tudo características que faltam a uma fêmea. O transactivismo está correcto ao postular que, se uma pessoa demonstra possuir qualidades que são típicas do sexo oposto ao seu, então é porque essa pessoa é do sexo oposto.

Aliás, há bastante tempo que eu ando desconfiado que algumas façanhas da história de Portugal que nos habituámos a atribuir a mulheres foram, na verdade, realizadas por homens. São demonstrações de inteligência, habilidade e virtude que tenho muita dificuldade em reconhecer como femininas.

Por exemplo, a Rainha Santa Isabel. De certeza que era uma mulher? É que transformou pão em rosas. O leitor conhece alguma boa ilusionista do sexo feminino? Pois, eu também não. Quando pensamos em magia, pensamos no Houdini, no David Copperfield ou no Luís de Matos. As meninas só lá estão para desaparecerem ou serem serradas ao meio.

E D. Teresa, mãe de D. Afonso Henriques. Ou será pai? A forma como, depois da derrota na batalha de São Mamede, D. Teresa correctamente recuou nas suas pretensões, é varonil. Quem já viajou num carro conduzido por uma mulher, sabe que as mulheres são péssimas a fazer marcha atrás.

Outra: a Padeira de Aljubarrota. A sério que achamos que uma mulher despacha 7 soldados castelhanos só com uma pá de forno? Está bem, está.

D. Luísa de Gusmão. Segundo os cronistas da época, terá dito ao seu marido, futuro D. João IV, que preferia ser rainha por um dia do que duquesa a vida toda. Essa vontade férrea de ser rainha é suspeita. Rainha em inglês é “queen”, que, como toda a gente sabe, é calão para “homossexual”. É evidente que D. Luísa de Gusmão era trans.

Mas há mais: soror Mariana Alcoforado também era um homem. Escreveu belíssimas cartas de amor no século XVII, uma altura em que as mulheres mal sabiam ler e escrever.

E Rosa Mota, com aquela frondosa lã debaixo dos braços, mesmo à macho? Já para não falar de Nossa Senhora de Fátima. Fartei-me de subir às árvores no quintal da minha avó com os meus primos, e as minhas primas nunca passavam da primeira ramagem. Querem convencer-me que uma rapariga, ainda para mais naqueles preparos, conseguia trepar ao cimo de uma azinheira?

Como estes há muitos outros casos de figuras da nossa história que tomamos por mulheres mas, numa segunda análise, percebemos facilmente que são homens. Obviamente, os erros de atribuição de género não acontecem apenas num sentido. Também os há no sentido oposto. Há personagens da história de Portugal que nos habituámos a ver como homens e que demonstraram ser mulheres. Pedro Álvares Cabral, por exemplo: ia para um sítio, com indicações precisas sobre o caminho, e mesmo assim perdeu-se. Mesmo à gaja.