A invasão da Ucrânia pela Rússia em 2022, na mesma lógica da anexação da Crimeia em 2014, reivindicando territórios que afirma serem seus, fez colocar na altura pelo menos uma pergunta académica, digamos assim. Afinal até quando recuamos para considerar quais as fronteiras legitimas ou históricas de cada Estado? Claro que a pergunta só pode ser mesmo académica. Na realidade, as fronteiras de cada Estado são aquelas que ele possuiu, desde a última vez que possuiu outras. A estabilidade só é conseguida se cada Estado abdicar de reconquistar pela força militar territórios que já possuiu. Por exemplo, sabemos que Estrasburgo pertence territorialmente à França, mas também sabemos que em Estrasburgo se fala correntemente alemão. Vamos voltar a discutir isto? Se vamos por aqui, não vamos a lado algum.

O recrudescer do conflito no Médio Oriente é uma boa ocasião para refletirmos de um modo mais global, com uma simples pergunta: Como foram estabelecidas ao longo da História as fronteiras dos 193 Estados que hoje fazem parte das Nações Unidas? A resposta também é simples e todos o sabemos: Ou foram através da guerra de conquista territorial, com mais ou menos ajuda da geografia, ou foram as fronteiras que os impérios coloniais decidiram deixar. Atentando apenas na Europa, Portugal, desde 1297, é o Estado cuja fronteira actual é a mais antiga, seguido pela Espanha em 1469. Já as actuais fronteiras da Suíça, Dinamarca, Reino Unido e França poderão ser reconduzidas respectivamente a 1648, 1658, 1707 e 1815. Quase todos os restantes países europeus têm as suas actuais fronteiras estabelecidas ou em 1919 ou após 1945, sem esquecer as fronteiras actuais dos países balcânicos e da ex-União Soviética, que são da década de 1990.

Estas fronteiras estão estabelecidas por numerosos tratados celebrados ao longo dos séculos, mas tais tratados foram sempre precedidos de guerras com números avassaladores de vítimas, como a Guerra dos Trinta Anos, no século XVII, as Guerras Napoleónicas, no século XIX, ou as duas Guerras Mundiais do século XX.

Existem tratados de paz e estabelecimento de fronteiras que foram celebrados na sequência da vitória de uma das partes do conflito (Congresso de Viena em 1815, ou rendição da Alemanha nazi em 1945), ou foram-no como consequência de um impasse (Congresso de Vestefália em 1648, ou Versailles em 1919).

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Todas estas guerras, que implicaram a redefinição de fronteiras, trouxeram consigo a expulsão e deportação de populações. Infelizmente a condição humana, ontem como hoje, não permite melhor. Como relembra Harald Jahner (A Hora dos Lobos, Edição D. Quixote, 2023) “Na Conferência de Teerão [local escolhido apenas porque Estaline tinha medo de voar, nota nossa] e nas conferências subsequentes de Ialta e Potsdam em 1945, os Aliados do Ocidente e da União Soviética decidiram que o Estado da Polónia devia ser restabelecido, mas deslocado para ocidente. A Polónia de Leste passou a fazer definitivamente parte da União Soviética; em contrapartida, a ocidente, a Polónia ganhou as regiões alemãs a leste da linha fronteiriça Oder-Neisse. A população alemã tinha agora de abandonar o território, que passara a pertencer à Polónia e a população polaca tinha de sair da região leste de expressão maioritariamente russa – uma deslocação forçada de proporções gigantescas que afetou tanto alemães como polacos.

Tudo isto releva para lembrar aos desconhecedores, ou aos convenientemente esquecidos, que não são apenas os palestinianos, mas também muitos europeus e outros povos no mundo (indianos e paquistaneses, por exemplo) que podem andar com a chave da sua antiga casa pendurada ao pescoço desde 1948, não existindo qualquer originalidade, nem sequer actualidade, no caso da Palestina, pois todas estas deslocações forçadas remontam à mesma época, a pós II Guerra Mundial.

A criação do Estado de Israel e de um Estado árabe na zona do Mandato Britânico da Palestina – o chamado Plan de Partage – foi aprovada na ONU pela Resolução 194 de 14 de Dezembro de 1948, votada a mando dos Estados Unidos e da União Soviética, no caso, uma das poucas coisas em que estiveram de acordo depois de 1945. Quem se der ao trabalho de consultar no Google, ou similar, o desenho de tal mapa, obviamente concordará – não necessita de ser militar, basta ter algum senso comum – que aquela divisão territorial só funcionaria com dois Estados que, mesmo não eivados de amores mútuos, pelo menos não se odiassem. De facto, existem zonas de Israel cuja largura, do mar à fronteira, é a distância entre Oeiras e Cascais e a zona árabe, só tem acesso ao mar em Gaza. A verdade é que Israel aceitou estas fronteiras em 1948, pois como confessado pelos seus líderes, ou aceitava isto ou ficava sem nada. Os árabes nunca a aceitaram, portanto, a primitiva e original Resolução da ONU foi liminarmente violada pelos árabes da Palestina e pelos Estados vizinhos. Israel é quantitativamente o maior incumpridor das Resoluções da ONU, mas a Resolução 194 de 1948, de que derivam todas as subsequentes, foi incumprida liminarmente pelos árabes.

Depois de várias guerras vencidas por Israel e alguns acordos com Estados Árabes e com a Autoridade Palestiniana, existe uma parte significativa dos dirigentes e da população, em ambas as partes, que não pretende a solução dos dois Estados ou apenas o aceita com fronteiras diferentes daquelas que Estados Unidos e União Soviética gizaram em 1948, como vencedores da II Guerra.

As divergências internas em cada parte de um conflito, sobre o modo de agir com a outra, são normais em todos os casos de disputas territoriais entre Estados ou populações, como em Caxemira, Nagorno Karabakh, Kosovo, Saara, etc. O que fará a diferença, sempre, é se a opinião em favor do compromisso é ou não a parte dominante em cada uma dessas partes. A barbaridade de 7 de Outubro tinha como finalidade conseguir que o peso da opinião em Israel fosse ainda mais dominante no sentido da inviabilidade dos dois Estados do Plan de Partage de 1948. E logrou, pelo menos por muito tempo, dar força à tese segundo a qual alguém tem de vencer.

A Resolução 194 da ONU tem hoje quase 80 anos. Ainda assim, continua a existir a reivindicação de uma Palestina até ao mar, que contraria completamente a Resolução e erradicaria Israel do mapa. A Resolução 194 tem tantos anos quantos os da decisão de entregar territórios da Alemanha à Polónia e da Polónia à União Soviética. Imagine-se que, na Alemanha dos dias de hoje, ganharia as eleições, ou ficaria perto disso, uma força política que reivindicava de novo a antiga fronteira no Oder-Neisse, a integração na Alemanha da antiga Prússia Oriental e já agora a Alsácia Lorena. Estamos a falar de fronteiras com o mesmo tempo histórico do Plan de Partage da Palestina, não de fronteiras da Idade Média. O que pensariam os polacos e os franceses? De facto, seja na Europa, no Médio Oriente ou em qualquer parte do mundo, quando não se aceita algum compromisso, então alguém tem de vencer.