A propósito do recente lançamento de um livro seu, Álvaro Vasconcelos, nome conhecido na área dos estudos estratégicos, deu uma entrevista ao jornal Público que tem várias passagens de pasmar. Não estão em causa as recordações africanas do entrevistado. Elas são o testemunho de uma pessoa que viveu parte da sua infância e adolescência em Moçambique e que valem justamente enquanto tal, isto é, como a visão pessoal de certos acontecimentos a que se assistiu ou de que se ouviu falar. É verdade que o cenário que Álvaro Vasconcelos descreve é uma espécie de África Minha de pesadelo, com mulheres sistematicamente violadas, negros espancados na via pública, escravatura e muitas outras violências; e é também verdade que essa descrição não coincide, muito pelo contrário, como o próprio, aliás, reconhece, com as recordações de outros brancos que viveram em Moçambique na mesma época. Mas isso não a desvaloriza. Estamos perante o testemunho de uma pessoa com uma sensibilidade, experiência e percurso próprios. Nessa óptica e nesse âmbito a entrevista é informativa e interessante.

Mas quando essa pessoa começa a falar da História de Portugal e da afirmação e preservação da memória de um povo no seu espaço público, a entrevista torna-se confrangedora, assente em opiniões surpreendentemente superficiais e pouco (e mal) informadas, quando não absurdas. Tudo isso acontece porque o entrevistado está a travar uma guerra ideológica e tem alvos específicos a abater.

Álvaro Vasconcelos começa por afirmar que em Portugal o racismo se apoia no lusotropicalismo, isto é, numa narrativa colonial que diz ser “completamente falsa”. Afirma, depois, que essa narrativa está patente “nos monumentos de Lisboa, por exemplo, no Padrão dos Descobrimentos”, que tem, na frente, o Infante D. Henrique. Passarei por cima das concepções — erradas a meu ver — sobre a relação entre racismo e lusotropicalismo para me focar na contestação do entrevistado à figura do infante. Álvaro Vasconcelos quer a desconstrução da sua aura histórica, tarefa difícil porque em Portugal, na sua perspectiva, há um culto desse personagem, “que por todo o lado é celebrado”, e quando se toca nele “a reacção é brutal e não só daqueles que votam Chega”. Tal reacção surpreende-o e — subentende-se — indigna-o porque na sua visão incriminatória “o Infante D. Henrique (foi) o primeiro comerciante de escravos.” Numa entrevista à RTP2 repetiu essa acusação em termos muito semelhantes, mas ainda mais insólitos, considerando que “o Infante D. Henrique foi o primeiro esclavagista.”

Eis-nos perante afirmações bombásticas, mas completamente falsas. “Primeiro comerciante de escravos”? “Primeiro esclavagista”? É surpreendente que Álvaro Vasconcelos suponha que a história da escravatura começou no século XV, quando o Infante viveu, e que julgue que  não havia escravos — milhões de escravos — na Antiguidade e na Idade Média e pessoas — milhões de pessoas — a comprá-los e a vendê-los. É surpreendente, também, que não saiba que aqueles escravos negros que no século XI, por exemplo, afluíam ao Cairo ou a Bagdade, tendo atravessado o deserto do Sara ou o Índico, eram levados por comerciantes de escravos muçulmanos, antes ou muitíssimo antes de o Infante D. Henrique ter vivido. Surpreendente, ainda, que ignore que a escravidão e o comércio de escravos também já se praticavam em Portugal e noutras partes da Península Ibérica muito antes do Infante haver nascido (sem termos de recuar ao Portugal romano ou árabe, bastará lembrar que os escravos muçulmanos se vendiam e compravam, e que no início do século XIII, por exemplo, se venderam em Lisboa três mil escravos mouros provenientes da conquista de Alcácer do Sal). Surpreendente, de novo, que desconheça que mesmo o comércio de escravos de proveniência ultramarina — das Canárias, nomeadamente — começou um século antes do tempo do infante. E estranho, por fim, que não perceba que mesmo que se considerasse, por mera hipótese académica, que haviam sido os descobridores portugueses a iniciar tão horrível prática, ainda assim seria desajustado considerar o infante como “comerciante de escravos” no sentido estrito da expressão, pois foi tão só alguém que beneficiou da escravização de pessoas (ou da sua venda) porque lhe cabia um quinto do que fosse obtido pelos seus homens, como era prática do tempo e não apenas em Portugal.

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Será possível que Álvaro Vasconcelos não conheça um único desses factos que refiro? Possível será, mas é muitíssimo improvável. O que sucede — suspeito eu — é que Álvaro Vasconcelos apagou inconscientemente todos esses acontecimentos do seu espírito. Por duas razões diferentes. Em primeiro lugar porque quando fala em escravos apenas considera os negros escravizados por portugueses, todos os outros de origens e epidermes diferentes são erros de casting no filme do seu pensamento e, por isso, podem ser removidos da história narrada pelo entrevistado. Em segundo lugar, e mais importante, porque Álvaro Vasconcelos pretende conotar negativamente o Infante D. Henrique, anatemizando-o como primeiro prevaricador. O interesse é demolir, denegrir, a figura do infante porque ela simboliza o primeiro impulsionador daquilo a que chamamos Descobrimentos, um núcleo central da memória desta nação; e, depois, levar esse infante demolido, às escolas e às cabeças dos alunos do secundário — um intuito que Álvaro Vasconcelos assumiu, candidamente, na RTP2. Assim, atacando a imagem do Infante D. Henrique, certeiramente identificado como importante baluarte da nossa memória colectiva, se desconstruirá a narrativa histórica impregnada do tal lusotropicalismo — narrativa que, segundo Vasconcelos, abriria “caminho à extrema-direita.” Seria, então, urgente aquilo que desidna por “descolonização da nossa narrativa histórica” e na primeira linha dessa “descolonização” estaria o derribamento do infante.

Este desígnio é terrível por perverter a verdade. O que haveria que ensinar aos alunos do secundário é que o tráfico de escravos foi uma actividade cuja origem se perde nas profundezas do tempo, e que foi permanecendo na história humana, século após século, persistentemente, muito antes dos portugueses se terem metido a praticá-la. Afirmar que o Infante D. Henrique foi o primeiro comerciante de escravos é pura e simplesmente aberrante. Não há nessa afirmação um grama de seriedade histórica, apenas pura e dura ideologia. É lamentável que Álvaro Vasconcelos difunda essa falsidade e é melancólico ver alguém com a sua idade e conhecimentos a dar voz e corpo à agenda, ao radicalismo e ao enviezamento da ideologia woke.

Enviezamento que, aliás, não fica por aqui. O Padrão dos Descobrimentos, como símbolo da maior façanha ou empreendimento histórico deste país em que vivemos, é outro dos seus alvos. Vasconcelos considera que esse monumento “é obviamente uma ofensa aos africanos.” Não nos explica por que razão o seria nem porquê apenas aos africanos e não igualmente aos asiáticos e aos ameríndios. O que deixa bem explicado é o que gostaria que se fizesse dele. De facto — confessou-o na entrevista à RTP2 —, não se “importava nada que desaparecesse”, mas atendendo ao tal lusotropicalismo que alegadamente infectaria ou aprisionaria as débeis mentes dos pobres portugueses, acha esse objectivo “irrealista”. Por isso, contentar-se-á com a construção, ao lado do dito Padrão, de “um (outro) padrão que contrastasse com a narrativa dos Descobrimentos, que falasse das lutas de libertação nacional (africana), do sofrimento que foi a escravatura…”

Trata-se de uma tentativa de anular a carga simbólica daquele monumento específico, e a sua importância para uma certa ideia de Portugal, mas, olhando mais para adiante, é, obviamente, uma ideia peregrina que, a ser tomada à letra, nos obrigaria a construir ao lado de cada monumento uma espécie de anti-monumento, como uma fotografia e o seu negativo. Ao lado da estátua do Marquês de Pombal, por exemplo, deveria implantar-se uma outra ou, pelo menos, uma inscrição, que lembrasse as muitas violências que Pombal patrocinou ou a que deu cobertura. E, claro, em coerência, estes princípios de garantia do constante contraditório memorialistico ao nível da monumentalidade, da estatuária, etc., deveriam ser adoptados universalmente. Ao lado do Arco do Triunfo os franceses deveriam construir um outro arco evocando o sofrimento dos povos que os exércitos napoleónicos dizimaram; ao lado das pirâmides de Gizé os egípcios deveriam erigir um monumento às multidões de escravos que as puseram de pé; e assim sucessivamente para a generalidade dos monumentos que existem por esse mundo fora.

Trata-se de uma concepção pueril e absurda, mas, ao mesmo tempo, megalómana como todas as ideias milenaristas, porque atribui aos que a perfilham e difundem a função quase divina de, por intermédio da figuração e da simbologia — isto é, da monumentalidade —, pôr equilíbrio no mundo e corrigir os injustiças passadas. Trata-se, em suma, de uma ideia woke.

Já disse acima que é triste ver alguém com a posição de Álvaro Vasconcelos perfilhar e divulgar as metas do wokismo, ainda que não seja surpreendente atendendo ao seu percurso e ao facto de haver gente woke de todas as idades, qualidades e feitios. Verdadeiramente surpreendente é a forma como distorce ou amputa o conhecimento histórico e como procura menorizar a acção histórica do homem branco. Um outro exemplo, para terminar. Vasconcelos afirmou, na entrevista do Público, que “os ideais da Revolução francesa — igualdade, liberdade, fraternidade — foram um grande progresso da humanidade. Apesar disso, não se dava a igualdade, liberdade, fraternidade aos povos das colónias.” Ora, não é exactamente assim. Logo no início da Revolução, a 4 de Abril de 1792, a República Francesa concedeu igualdade de direitos políticos aos homens livres negros ou mestiços, e, cerca de ano e meio depois, emancipou os escravos. O facto de adiante, já na era napoleónica, as coisas terem revertido, não apaga aquilo que havia sido feito pelos revolucionários republicanos e que ficaria como um farol capaz de guiar os esforços igualitários posteriores.