Também é porque a Constituição o proíbe, mas é por representar uma violação de direitos fundamentais básicos de todos – e não só de pedófilos – que a proposta do partido de André Ventura se torna repugnante. É claro que, nesta como noutras matérias, o Parlamento, na pessoa do seu Presidente, optou por recusar, sem debate público, a proposta da castração química de pedófilos. Na verdade, tem sido sempre assim. De cada vez que André Ventura avança com algo capaz de despertar os sentimentos mais básicos de todos nós – onde me incluo – aqueles que a ele se opõem são incapazes de nos convencer, pela argumentação, de que as suas propostas são ofensivas dos direitos mais básicos. Daí ao fortalecimento eleitoral do Chega! vai o salto de uma pulga.
Não é porque somos a favor de pedófilos que a sociedade portuguesa, através das suas instituições e, naturalmente, da sua Constituição, se opõe à aplicação de penas físicas. Este é, aliás, o caminho que André Ventura quer percorrer: explicar aos portugueses que quem não é a favor da castração química de pedófilos é a favor dos próprios pedófilos – ou até, talvez, seja mesmo pedófilo. Não, e é bom que fique claro para todos: quem está contra André Ventura não é a favor da anarquia; não, quem está contra André Ventura não é pela banalização do mal; não, quem está contra André Ventura não é um perigoso esquerdista, não quer a destruição dos valores que temos enquanto sociedade. Pelo contrário, é André Ventura que pretende destruir esses valores.
O Professor de Direito Penal André Ventura sabe que o nosso ordenamento jurídico prevê medidas de segurança fundadas no grau de perigosidade do criminoso. Sabe até que, em determinados casos, aquele que pratica um crime pode passar o resto da vida num estabelecimento adequado, assegurando que não constitui perigo para a sociedade. Sabe o jurista André Ventura, mas o político André Ventura faz por ignorar o que sabe, optando por lançar medidas para o espaço público de opinião, que a comunicação social trata por regra de forma errada, e que mais não são que uma forma de ele próprio ganhar eleitores e, com isso, alcançar os seus objectivos políticos. Ventura não está preocupado em aperfeiçoar o país e o ordenamento jurídico que temos, está preocupado em ganhar poder, colocando-nos uns contra os outros, o povo contra as elites, os menos formados contra os mais esclarecidos. E as elites, essas, têm, insisto, dado asas suficientes à ambição de André Ventura.
A aplicação de uma pena física, seja contra quem for, atenta contra a dignidade dos cidadãos. Atribuir ao Estado, que é dotado de poder coercivo para o fazer, a capacidade de fazer aplicar penas físicas sobre as pessoas é regressar a um tempo em que a sociedade não impõe limites ao Estado. Em que o Estado não se limita em função da nossa liberdade, e em que o Estado surge como mero bárbaro e carrasco – primeiro, contra pedófilos; depois, contra quem mais for “necessário”. A dignidade da pessoa humana, o grau de civilização que alcançámos, garante a protecção das vítimas – e é essa protecção que tem de ser garantida. Mas essa protecção garante-se com respeito pela dignidade da pessoa, ainda que criminosa, ainda que representante do Mal na Terra. Tal como garante que aquele que atenta contra bens jurídicos de terceiros deve cumprir pena pelos factos que pratica, que essa pena deve ser efectiva, que deve servir de exemplo para que não volte a praticá-los e para que a sociedade perceba que quem comete tais factos sofrerá consequências por isso. Mas o incêndio florestal não se apaga se o Estado atirar o incendiário para o meio do pinhal.
Explicar a um povo zangado com as suas elites, indiferente à política, focado no sensacionalismo e no voyeurismo jornalístico, que é possível aperfeiçoar o ordenamento jurídico sem ofender princípios básicos de civilização, é difícil. Eu compreendo essa dificuldade, sinto-a na pele todos os dias. André Ventura optou por este caminho que, parecendo mais fácil, eu esperava que fosse o mais difícil: tomar-nos a todos por bárbaros, tomar-nos a todos por estúpidos.