Talvez tenha passado despercebida uma afirmação de André Ventura aquando da campanha presidencial deste ano: «Nós somos o Exército Popular português». Não me foi indiferente, confesso. Os radicalismos alimentam-se uns aos outros, recorrem aos mesmos métodos, à mesma retórica, ao mesmo tipo de violência, que pode não passar do verbo, mas que também pode dar o salto lógico em direcção à violência física. Quando ouvi a frase do candidato presidencial, recordei-me imediatamente – salvo as normais distâncias entre as duas figuras e os dois momentos históricos – do Exército Popular Revolucionário proposto por Otelo, que teria como consequência o seu Projecto Global.

Se há coisa que tem ficado clara nos últimos anos é a capacidade que os radicais têm de se focar no radicalismo de sinal oposto, alegando a sua pureza, a sua boa vontade, os seus meritórios objectivos, contra os cidadãos que não são de bem, contra os impuros que atentam contra o caminho proposto. Não é uma novidade. Boa parte da esquerda passou os últimos quase 50 anos a fazê-lo: não reconhecendo legitimidade à direita, mesmo à moderada, para governar; acusando o centro-direita de prosseguir as suas opções políticas por se encontrar refém de interesses; apontando-lhe falta de sentido democrático. Isso é notório em vários momentos. Quando Otelo afirmou que o Governo de Passos Coelho era ilegítimo e, portanto, devia ser derrubado; quando Isabel do Carmo afirmou que o Governo da AD, em 1982, era «fascista» e que os seus membros se assemelhavam aos «notáveis nazis»; quando Francisco Louçã entende que os liberais acabam, de forma inevitável, a apoiar governos fascistas.

A esquerda radical foi aceite no quadro da normalidade democrática, acomodando-se definitivamente à democracia liberal, mais resignada que convencida – e prova disso mesmo é o facto de o Bloco de Esquerda ter acomodado vários condenados por terrorismo no seu seio. O PCP, mais maduro e institucional, tinha feito o mesmo, garantindo a sua salvação dentro do quadro partidário da democracia, e percebeu essa necessidade muito mais cedo, logo a 25 de Novembro de 1975. A direita radical, porém, ficou de fora da contabilidade política. Não por falta de vontade, mas porque a direita moderada percebeu que para garantir a sua existência, para garantir a polarização aceitável dentro da democracia parlamentar e liberal que pretendia, não podia pactuar com ela. A grande novidade destes tempos é que a direita radical viu ruir o muro que tinha sido construído à sua frente.

Sá Carneiro, por exemplo, foi muito claro relativamente à marcação de fronteiras entre o que era aceitável em democracia e o que devia ficar do lado de fora. Miguel Carvalho, jornalista e autor do livro “Quando Portugal Ardeu”, ofereceu um bom exemplo para retratar esta posição. Ramiro Moreira, bombista do MDLP condenado em tribunal, chegou a ser militante do então PPD. Mas, relata Miguel Carvalho, «uma coisa era fazer segurança aos dirigentes e envolver-se em escaramuças. Mas colocar bombas, participar em atentados e manter-se ligado ao PPD tornava a militância insustentável e reprovável» para Sá Carneiro. Em Novembro de 1975, o líder dos social-democratas chamou o bombista a sua casa e disse-lhe: «Ou sais do partido ou expulso-te.»

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Para Miguel Carvalho, Sá Carneiro «viu mais além do que a simples táctica», percebendo muito rapidamente que o seu partido, o PPD, não podia resvalar para caminhos que, por princípio, devia condenar. O autor e jornalista afirma também que o PS podia ter seguido o mesmo caminho, mas que as linhas vermelhas não foram tão acentuadas pelos socialistas: «O PS teve um grau de envolvimento muito grande com a rede bombista e com os seus objectivos. Achou, a determinada altura, que valia tudo para combater o PCP e isso significou, em certo momento, uma cumplicidade com o radicalismo de direita.»

Não sendo eu historiador, arrisco dizer o que me parece evidente: a História não serve para ajustarmos contas. Mas pode ajudar-nos a compreender o presente através das luzes e sombras do passado. Não compreendo a perseguição política à direita radical. Acho que ela tem o seu direito a existir, mas prefiro viver num País que tem melhores soluções políticas à disposição, pelo que não precisa dela para nada. O que não compreendo é que os partidos da direita moderada estejam dispostos a aceitá-la e a normalizá-la, mesmo que isso possa significar o reconhecimento da sua própria incapacidade política e do seu caminho para a irrelevância junto da sociedade portuguesa.

Ao contrário do que muita gente tem afirmado, o PSD não tem um problema de falta de ideias. Elas não faltam: Joaquim Miranda Sarmento, por exemplo, tem tido um papel muito relevante na produção de um conjunto de propostas que espelham uma ideia própria de País, pelo que o PSD teria, em tese, todas as condições para se tornar a grande alternativa política ao Partido Socialista. Mas Joaquim Sarmento não é um partido. E talvez o PSD tenha problemas estruturais de tal forma profundos, muito para lá da inábil e incompetente liderança de Rui Rio, que o levam a que não consiga liderar com firmeza um projecto de alternativa. Talvez até António Oliveira tenha razão quando bateu com a porta alegando razões de higiene, e isso possa explicar mais do que se possa ter pensado na altura. A lista de causas é, provavelmente, grande e o PSD não voltará ao seu papel enquanto não as resolver.

Muitos têm apontado a liderança de Rui Rio como a razão da quase irrelevância eleitoral e social do PSD. Mas a verdade é que o partido não é sequer capaz de produzir um candidato interno alternativo que seja apto a ganhar uma eleição a Rio. Fechada, por vontade própria, na sua gaiola, a direita portuguesa vai optando por falar quase exclusivamente para si. Para os seus indefectíveis, para os que a aplaudem sempre, independentemente do que faça. Mesmo a direita intelectual optou por focar-se em si mesma, no seu alegado brilhantismo, sem que ninguém derrube o elefante na sala e pergunte: se a direita portuguesa é tão boa, se tem tão boas ideias, se tem gente tão culta e inteligente, porque é que não ganha uma eleição? Porque o País é de esquerda? Mas em que País de esquerda se dá maioria absoluta à AD poucos anos depois do PREC? Em que País de esquerda Cavaco Silva ganha quatro eleições com maioria absoluta?

O resultado final desta tendência narcisista da direita partidária e intelectual é que, com elevada probabilidade, acabaremos nas mãos da plataforma de convergência exigida por André Ventura. Essa eventual coligação de forças – umas mais, outras menos irrelevantes – não terá outro resultado eleitoral que não seja o somatório dos seus fiéis. E o mais grave de tudo é que o PSD de Sá Carneiro se encontra cada vez mais disposto a acolher o partido de André Ventura na formação dessa alternativa que, na verdade, não servirá para outra coisa que não reforçar a autoridade e o lugar de chefe da direita portuguesa ao presidente do Chega. É para lá que caminhamos. Permitam-me que o caminho não me agrade.