No princípio da semana, D. Zacarias Kamwenho, Arcebispo emérito do Lubango (antiga Sá da Bandeira), capital da província da Huíla, apresentou o seu livro “Acreditei, por isso falei: revisitando o Prémio Sakharov 2001”. A apresentação foi em Luanda, no bairro Vila Alice, na Livraria Paulinas, que é também a editora. Não podendo estar presente pessoalmente, pude recordar, com gosto, esses tempos do meu primeiro mandato como eurodeputado e onde estávamos há 22 anos, no percurso que conduziu à atribuição do Prémio Sakharov a um angolano, pela primeira vez e, até agora, única. Na altura, o segundo da África subsaariana – o outro fora Nelson Mandela (1988) – e o segundo do espaço lusófono – o outro fora Xanana Gusmão (1999).
Em Agosto de 2001, o comboio da candidatura de D. Zacarias Kamwenho ia já avançado e em boa velocidade, no Parlamento Europeu. Foi em 7 de Setembro de 2001 que fui de Estrasburgo a Berna para me encontrar com D. Zacarias, nos conhecermos pessoalmente, trocarmos ideias e entregar-lhe cópia do processo de candidatura que tinha acabado de dar entrada no Parlamento Europeu, para deliberação. Guardo as fotografias desse encontro. Ficámos amigos para sempre. A minha família também. A última vez que estivemos juntos foi há um mês, na Jornada Mundial da Juventude Lisboa 2023. D. Zacarias também veio.
Tudo começara nos primeiros meses do ano de 2001. A guerra civil angolana prosseguia violenta no terreno, com combates a nordeste de Luanda e no planalto interior, no Leste do país. Não eram só as mortes. Os números de refugiados e deslocados eram enormes: 1 milhão dos primeiros, 4 milhões dos segundos. Uma tragédia humanitária colossal. Entre MPLA e UNITA, animava-me a tentativa de apoiar uma “terceira via”, se a houvesse.
O mais comum é as guerras civis impedirem “terceiras vias”, dada a bipolarização extremada que cavam. Todavia, em Angola, ela surgira. E parecia estar a consolidar-se. Centrava-se no COIEPA, Comitê Inter-Eclesial para a Paz em Angola, onde se destacavam as figuras do Arcebispo D. Zacarias Kamwenho, Presidente, e do Reverendo Daniel Ntoni-a-Nzinga, Secretário Executivo. Ntoni-a-Nzinga era pastor da Igreja Evangélica Baptista de Angola e D. Zacarias, Presidente da CEAST, a conferência episcopal angolana da Igreja Católica. O COIEPA formara-se no rasto de vários encontros pela Paz, que se vinham realizando em Angola, a partir da CEAST, doutras igrejas e dos raros faróis de sociedade civil. Ganhara força referencial e concitava atracção independente e respeito geral, sobressaindo o Arcebispo D. Zacarias, como seu Presidente. A figura de D. Zacarias poderia ser destacada internacionalmente para a influência nacional da CEAST e do COIEPA em Angola aumentar em prol da paz e dos direitos humanos.
A avaliação foi sempre dialogada com amigos angolanos, em especial o Filomeno Vieira Lopes e alguns jornalistas. Este diálogo deu-me luz verde para preparar a candidatura. Não se pode avançar com nomes sem consentimento, uma vez que as candidaturas podem correr bem, mas podem correr mal. É preciso ter a certeza de um insucesso não causar dano à ideia que a norteia e, ganhando ou não ganhando, a visibilidade internacional adquirida ser sempre útil.
Em Maio, tive a certeza de D. Zacarias Kamwenho ser a candidatura certa e oportuna para a paz em Angola. Avancei para a recolha de apoios em Junho. O grupo político a que pertencia (a UEN – União para a Europa das Nações, liderada pelo francês Charles Pasqua) era um pequeno grupo, com pouco mais de 30 deputados. Por isso, a estratégia que segui foi montar uma propositura independente, com, além de mim como proponente, subscritores individuais de peso (como Mário Soares, Pacheco Pereira, Gil-Robles, Gerard Collins) e vários deputados de diferentes grupos políticos (UEN, PPE-DE, PSE, Verdes/ALE e EDD). Deu trabalho, mas resultou: em Julho, a candidatura angolana de D. Zacarias Kamwenho, activista da paz, já tinha recolhido uma centena de assinaturas de eurodeputados, num espectro qualificado e amplo de apoios políticos.
Entregues todas as candidaturas em Setembro, surgiram nove nomeações propostas para o Prémio, que representavam nove situações críticas para a paz e os direitos humanos: as crianças-soldado, Tunísia, Colômbia, Israel/Palestina, guerra em Angola, pena de morte nos EUA, China, Tibete e Zimbabué.
O processo de decisão começaria em 2 de Outubro: os deputados da Comissão dos Assuntos Exteriores escolheriam, de entre as nove, uma lista restrita de três candidaturas. A amplitude dos apoios à nossa propositura provou bem neste primeiro teste: a candidatura israelo-palestiniana tomou a dianteira, seguida de perto pela candidatura de D. Zacarias, juntando-se ainda a candidatura tunisina (a Sra. Sihem Bensedrine).
A decisão final seria a 18 de Outubro: o órgão máximo do Parlamento Europeu, a Conferência de Presidentes, decidiria o vencedor de entre aquelas três propostas. Tudo ponderado, mudei a estratégia: em vez de lutar só pela candidatura angolana, passei a bater-me pela escolha ex æquo da candidatura angolana e da israelo-palestiniana. Esta tinha um apelo muito forte: um homem e uma mulher, um palestiniano e uma israelita, um escritor e uma professora universitária, ambos advogados da paz, em matéria inesgotável, tema sempre candente. O instinto lembrou-me o ditado: “se não os podes vencer, junta-te a eles.” Receei que, num órgão em que estavam só líderes dos grupos políticos com a Presidente (Nicole Fontaine), a balança pudesse pender em definitivo para o quadro Israel/Palestina. Transmiti a ideia da atribuição ex æquo pelos apoiantes mais fortes da nossa candidatura, em diferentes grupos políticos e… resultou.
A história do Prémio Sakharov regista o que se passou na reunião da Conferência de Presidentes, em 18 de Outubro de 2001: «Vários presidentes dos grupos políticos manifestaram-se a favor da atribuição conjunta do prémio aos Sr. Izzat Ghazzawi e Sra. Nurit Peled-Elhanan, cuja nomeação obteve a maioria absoluta dos votos na Comissão dos Assuntos Externos, e a Dom Zacarias Kamwenho, um homem de paz de um país africano devastado pela guerra há mais de 25 anos. (…) A discussão girou em torno da questão de saber se o Prémio Sakharov poderia ser atribuído a dois nomeados. (…) Na sequência de uma votação, a Conferência dos Presidentes decidiu atribuir o Prémio Sakharov 2001 a Izzat Ghazzawi e à senhora Nurit Peled-Elhanan, bem como a Dom Zacarias Kamwenho. Esta foi a primeira vez que o Parlamento Europeu atribuiu o Prémio Sakharov a três laureados.»
Fora atingido o objectivo da atribuição do Prémio Sakharov 2001 e, por via de D. Zacarias Kamwenho, a consagração internacional da causa da Paz em Angola. Agora, importava potenciar o seu efeito. Ainda se combatia em Angola. A urgência era abreviar o fim da guerra: sentar toda a gente à mesa, numa solução angolana para o conflito.
A cerimónia de entrega do Prémio foi rodeada desse espírito. Com os meus colaboradores, organizei uma exposição pela Paz em Angola, apoiada em fotografias fornecidas pela agência Lusa, com imagens dos efeitos da guerra. Em zona central e de muita circulação no edifício Louise Weiss, em Estrasburgo, a exposição tornou-se a Sala Angola durante a semana do Prémio (10 a 14 de Dezembro). Recebeu muitos visitantes e aí se realizaram alguns eventos, com destaque para o espectáculo musical de Raúl Indipwo, que se associou ao momento. Dom Zacarias Kamwenho veio acompanhado por uma comitiva em que destaco Daniel Ntoni-a-Nzinga, Filomeno Vieira Lopes (mais recentemente, do Bloco Democrático), o saudoso Paulino Pinto João (dos POC, os partidos da oposição civil) e Cesinanda Kerlan Xavier (mais recentemente, da CASA-CE). Convidei também Maria Barroso, que, como Presidente da Fundação Pro Dignitate, apoiara muitas das iniciativas independentes pela paz, animadas pelas igrejas em Angola.
Dom Zacarias, junto com a sua comitiva, expôs a situação em Angola e as exigências civis de paz e respeito dos direitos humanos, na reunião habitual dos galardoados com a Comissão dos Assuntos Externos. Foi convidado de honra da UEN, a que eu pertencia. E reuniu, em Bruxelas e em Estrasburgo, com os Comissários Europeus do Desenvolvimento e das Relações Externas, Poul Nielson e Chris Patten. Fez várias declarações públicas e entrevistas.
O momento alto foi a entrega do Prémio Sakharov 2001, no plenário do Parlamento Europeu, em Estrasburgo (edifício Louise Weiss), no dia 12 de Dezembro de 2001. “Tolerância” foi a palavra-chave no discurso do Arcebispo Kamwenho, frisando que «a reconciliação nacional, fundada no diálogo, seria capaz de quebrar o ciclo interminável da guerra.»
A esta distância, salta à vista que estas palavras foram proféticas.
A atribuição do Prémio Sakharov, infelizmente, não teve o efeito de interromper logo os combates, poupar mais vidas, evitar novos riscos dramáticos. Não teve consigo o indispensável factor tempo. Apenas dois meses depois, em 22 de Fevereiro de 2022, Jonas Savimbi era morto em combate, gerando mais incerteza.
O espírito da paz, contudo, estava já presente. Foi possível que, no rescaldo da morte do líder da UNITA, se assinassem acordos de paz, ainda no Luena, solenemente confirmados em Luanda, em 4 de Abril, data que Angola comemora todos os anos. É justo lembrar o papel do Presidente José Eduardo dos Santos, que, diversamente do que é frequente no mundo (em África, em particular), não aproveitou o momento de forte superioridade militar para dizimar os adversários. Antes partiu daí para a estrada da reconciliação nacional. Pode criticar-se o Presidente José Eduardo dos Santos por outros aspectos. Só se pode saudá-lo pela visão, pela abertura e pela inteligência com que abriu as portas à paz, nesse dramático momento determinante de 2002.
Mas importa ter presente que isso também se deveu ao clamor pela reconciliação e pela paz que crescera na sociedade angolana desde os finais da década de ’90, a partir de vários sectores civis, e que convergira para o COIEPA e na voz de D. Zacarias. A sociedade angolana, cansada da guerra, exausta mesmo, tinha rompido de vez com o “campeonato da guerra” em que vivia há décadas. Queria ponto final. E foi isso que aconteceu, como D. Zacarias Kamwenho profetizou em Estrasburgo: a reconciliação nacional, fundada no diálogo, foi capaz de quebrar o ciclo interminável da guerra. Guerra, nunca mais.