Matteo Salvini, um dos líderes da direita nacionalista italiana, lembrou-se de ir à Polónia derramar solidariedade sobre os refugiados ucranianos. Teve azar, porque Wojciech Bakun, o presidente da câmara de Przemysl, não se esquecera do Salvini de 2014, enfiado numa t-shirt com a cara de Putin. Quando Salvini se preparava para arengar à imprensa, Bakun pregou-lhe na cara com a dita t-shirt. Não, Bakun não é um esquerdista: é dirigente de um partido da direita nacionalista, o Kukiz 15, parecido com a Liga de Salvini. Mas os nacionalistas polacos, ao contrário dos italianos, não se enganaram sobre Putin.
Matteo Salvini em Itália ou Marine Le Pen em França julgaram Putin um nacionalista como eles e não hesitaram em tomá-lo como referência na crítica do wokismo. Não perceberam que a ideia de Putin não consiste na revalorização das soberanias nacionais, mas na reconstituição do império russo. Não distinguiram entre a crítica democrática do wokismo, e uma campanha ditatorial contra a “decadência”. Em tudo isto, revelaram como também eles, muito empertigados contra a suposta complacência ocidental no debate sobre as migrações desreguladas, se deixaram corromper por uma igual complacência no que diz respeito à segurança das nações ocidentais e à defesa das suas liberdades. Anos de paz sob o guarda-chuva americano embotaram-lhes, como a todos os outros, o instinto de sobrevivência. Na Polónia, os nacionalistas sabem que o seu lugar é ao lado dos EUA contra a Rússia, tal como na Coreia do Sul sabem que é ao lado dos EUA contra a China. Em Portugal, Ventura também sabe: o Chega, tal como o Vox em Espanha, condenou a invasão russa desde o princípio. A restante direita nacionalista da Europa ocidental precisa de acordar, se não quiser ser tratada – justificadamente — como os idiotas úteis da ditadura de Putin.
Salvini mereceu ser vexado na Polónia. Mas há outros líderes políticos ocidentais a quem também faria bem um duche de humilhação. Por exemplo, os ex-chanceleres alemães Gerhard Schroeder e Angela Merkel, que irresponsavelmente submeteram o seu país à dependência energética da Rússia. Ou todos aqueles que esperaram passar por grandes estadistas ao opinar que a Rússia devia ser tratada como mais um país para fazer negócios. Também eles não perceberam muita coisa. Não perceberam que a Rússia, um império falhado, só poderá manter-se através da agressividade “geopolítica”. Acreditaram que seria possível diluir politicamente todos os Estados, da Rússia de Putin e à China de Xi Jinping, no banho morno do comércio livre internacional. E quando alguém os contradizia, tiravam do bolso um “liberalismo” mal estudado na véspera para explicar que as nações eram irrelevantes, e que o futuro não tinha fronteiras.
Os seus erros são ainda mais graves do que os de Salvini e de Le Pen. Estes apenas se comprometeram a eles próprios. Políticos como Schroeder e Merkel comprometeram os seus países, e mais: estimularam as agressões russas, na medida em que fizeram Putin acreditar que a dependência energética obstaria a qualquer reacção séria às suas aventuras. Nos EUA, não foi diferente. Em 2008, perante a invasão russa da Geórgia, Condoleeza Rice disse claramente o que os líderes ocidentais andam a balbuciar agora, sobre o autoritarismo de Putin e a sua hostilidade. Mas nesse tempo, isso apenas serviu à esquerda americana para continuar a acusar o presidente Bush de ter “alienado” Putin. Ainda em 2012, Barack Obama riu-se das prevenções de Mitt Romney contra a Rússia: era mais uma vez a direita conservadora a tentar reinventar a Guerra Fria. Em 2014, o mesmo Obama ignorou praticamente a primeira invasão da Ucrânia. Só em 2016, quando Trump foi eleito, é que os Democratas se lembraram de o culpar, à falta de melhor, pela indulgência com que eles próprios tratavam há anos a ditadura russa. Essa russofobia anti-trumpista não fez muita diferença, porque desde então Biden e os seus aliados europeus mantiveram a Ucrânia fora da NATO, e só quando Zelensky se recusou a fugir, é que sentiram obrigação de auxiliar a resistência ucraniana. Já aprenderam que a segurança das democracias ocidentais não pode depender da ideia de que “Putin e os seus cúmplices têm tanto dinheiro a perder que não se atreverão a atacar”?
A maior parte dos líderes liberais (chamemos-lhes assim) e nacionalistas no Ocidente enganou-se sobre Putin. Apenas os comunistas e os neocomunistas o perceberam. Não lhes escapou que o ditador russo trabalha para destruir a ordem internacional que garante as democracias ocidentais contra ataques e subversões. Por isso, PCP e BE em Portugal recusam-se a condenar Putin ou, quando forçados a isso, insistem em condenar todas as partes genericamente, apenas para poderem condenar a “política belicista da Nato”. Putin não é comunista, mas um líder da Rússia imperial? Comunistas e neocomunistas conhecem a história. Em 1917, foi a Alemanha imperial que meteu Lenine num comboio para a Rússia. Os dirigentes do PCP e do BE não se importariam certamente de chegar a Lisboa num comboio de Putin. Comunistas e neocomunistas nada têm a aprender. Liberais e nacionalistas é que, pelo contrário, deveriam começar a fazer um esforço.
PS. Para quem se perguntar: e ele, não se terá enganado?, remeto para o que escrevi sobre Putin aqui no Observador vai fazer oito anos, a 19 de Novembro de 2014: “O ar da Rússia cura a homossexualidade”.