A justificação da existência de todas as ordens profissionais é a da necessidade de garantir a qualidade dos atos profissionais cujo exercício exige autonomia e capacidade técnica, de forma a serem salvaguardados os interesses de todos aqueles que recorrem aos seus serviços. Podem condicionar o acesso à profissão e o seu exercício. Podem estabelecer normas técnicas ou deontológicas que devem ser seguidas pelos seus associados. Na verdade, o objetivo mais importante é o de proteger a corporação contra tudo o que seja considerado ameaça ao estatuto social ou ao rendimento.

São inúmeras as ordens profissionais em Portugal: Advogados, Arquitetos, Assistentes Sociais, Biólogos, Despachantes Oficiais, Economistas, Enfermeiros, Engenheiros, Farmacêuticos, Médicos, Médicos Dentistas, Veterinários, Notários, Nutricionistas, Psicólogos, Revisores Oficiais de Contas, Solicitadores e dos Agentes de Execução. Quando estiver a ler este texto é possível que tenha aparecido mais umas ou que eu me tenha esquecido de alguma.

No memorando de entendimento assinado com a troika a 17 de maio de 2011 era sublinhada a necessidade de ser revisto e reduzido o número de profissões reguladas e de liberalizar o acesso e o exercício. Portugal conseguiu não aplicar. Mais recentemente, na negociação do PRR fomos mais uma vez instados a reduzir as restrições para o exercício de profissões reguladas, para além daquelas que derivam diretamente da lei. A necessidade de receber mais uma “mesada” conduziu à adaptação de alguns estatutos de ordens profissionais, mas não nos enganemos: será sempre sol de pouca dura.

A Ordem dos Médicos Dentistas, até agora pouco conhecida dos portugueses, alcançou nos últimos dias as primeiras páginas dos jornais com a afirmação pelo seu bastonário da necessidade de encerramento de todas as licenciaturas públicas em medicina dentária, deixando apenas as universidades privadas. A razão invocada é simples: o número destes profissionais tem aumentado na última década de forma consistente, o que aliado ao desenvolvimento de unidades empresariais tem conseguido alargar um pouco a qualidade da saúde dentária do país, ainda muito incipiente. Contudo, os rendimentos destes profissionais têm decrescido significativamente desde o tempo em que os consultórios individuais eram muito rentáveis, existindo hoje uma emigração significativa para países europeus com salários mais elevados. Claro que os organismos corporativos conhecem a solução: alargar esta componente no serviço nacional de saúde cujo orçamento está sempre à beira da rutura, e melhorar aí as suas condições salariais. Sendo a solução tão simples não se percebe porque não é encarada.

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Já em 2016 os jornais noticiaram que a Associação Nacional de Estudantes de Medicina (ANEM) propôs a redução do número de estudantes de medicina, de 1800 para cerca de 1300, o que felizmente o governo não fez. A Ordem dos Médicos, na altura, apoiou esta reivindicação, pelo facto de considerar que se estava a ultrapassar a capacidade formativa das faculdades, e a saturar a formação pós-graduada. É habitual assistirmos a intervenções desta ordem a reclamar contra a abertura de novos cursos porque haverá em Portugal médicos a mais. Sempre pelos melhores motivos.

Ver hoje que há falta de médicos no serviço nacional de saúde porque os atuais profissionais não aceitam trabalhar pelos valores que são pagos pelo Estado, levanta uma questão: pode o país (não é o governo!) pagar mais a estes profissionais para os atrair, deve parar de os formar porque está a “fornecer” recursos humanos gratuitos aos outros países da Europa, ou deve formar ainda mais para poder fornecer serviços de saúde à população? Esta pergunta não tem resposta fácil, mas vale a pena recordar uma afirmação atribuída a um antigo ministro das finanças “da frase ‘não há dinheiro’ qual é a palavra que não compreendem?”

Mas não é apenas na área da saúde que as corporações fazem sentir o seu peso. No auge da construção, pouco antes do desencadear da crise de 2008-2011 a ideia de rendimento garantido no sector era tal que a Ordem dos Engenheiros procurou regular a formação, distinguindo entre graus académicos reconhecidos ou não numa formação na altura disputada por muitos alunos. Durante muito tempo sobrepôs-se ao sistema universitário de avaliação, na altura muito incipiente. A crise da construção e a grande redução da importância relativa deste sector na economia portuguesa acabou ao mesmo tempo com a oportunidade e o problema.

É positivo quando os jovens querem saber a qualidade potencial da sua vida profissional e toda a informação deve ser disponibilizada, mas partindo do princípio de que cabe aos próprios decidir. A excessiva dependência do emprego público permite que se acalente a esperança de um “longo rio tranquilo”, onde o risco se reduz muito na altura em que fica garantida a entrada num curso universitário. Contudo, a grande preocupação que as corporações têm com os estudantes (não se formem mais porque não encontrarão emprego), ou com o país (não vale a pena pagar o ensino superior a profissionais que emigram) são aparentemente virtuosas, mas traduzem-se necessariamente numa redução das possibilidades que temos de garantir serviços públicos de qualidade com custos que o país pode suportar.

As ordens profissionais são importantes quando cumprem o seu papel, mas quando o extravasam, estão a fazer um mau serviço aos portugueses. Talvez hoje não repitam o patético que foi a luta da Ordem dos Médicos contra os medicamentos genéricos, mas, tal como os sindicatos, têm hoje um papel de defender “os que estão” contra os que “querem entrar”.

Miguel Torga, no poema “Ar Livre” do livro Cântico do Homem, publicado em 1950, clamava contra o poder castrador de uma sociedade fechada: “Ar livre, sem restrições!/Ou há pulmões/Ou não há!/Fechem as outras riquezas/Mas tenham fartas as mesas/Do ar que a vida nos dá!”. Já não estamos seguramente num tempo em que o país andava ao ritmo da “câmara corporativa”. Mas ainda temos muitas áreas protegidas pela “borralheira/De estufa calafetada”, onde há muitas janelas para abrir e temos de confiar mais na capacidade de cada um de nós tomar decisões.