A corrupção foi a 1.ª medida deste governo e este segundo mês de governação é o da expectativa das medidas que se propõem. De facto, ‘a corrupção ataca a essência da democracia e os seus valores fundamentais’ (Luís Sousa) e é ‘o factor explicativo do actual declínio dos níveis de confiança institucional’ (Luís Sousa e João Triães). Convém, no entanto, fazer a destrinça clara entre duas perspetivas: analisar e atacar o fenómeno enquanto crime e pela via do justicialismo ou antes enquanto modelo social e pela via de uma auditoria séria à Administração Pública.

Em primeiro lugar, ao justicialismo populista da primeira perspetiva, consideramos neste texto (como vários especialistas) que a corrupção (‘abuso de um poder público confiado para ganhos privados’) deve ser entendida como um modelo social. Assim, em segundo lugar, é uma agenda de design transformacional das instituições públicas que se torna necessária, enfatizando checks and balances e, especificamente, uma atenção à equação entre confiança política e pessoal por um lado, e meritocracia e liberdade por outro. Considera-se que tal equação nas suas variantes institucionais está na base da relação entre monopólios e concorrência e entre intolerância e tolerância e, portanto, no centro da questão da corrupção. Assim, em terceiro lugar considera-se que é necessária uma auditoria às diversas instituições públicas (seja de administração direta do estado, de administração indireta ou administração local) pois é lícito partir da tese (abstracta) que o designamos como ‘efeito-casa’ e ‘ciclo de corrupção’ poder estar larvar ou em acção em cada uma delas. Finalmente, o corolário de tudo isto é que alguém que tenha percebido ‘como as coisas se fazem’ ao nível de instituições públicas de vários níveis da administração, é lícito que pense que possa fazê-lo ao nível do Estado como um todo, através de um partido.

1. Populismo como justicialismo e corrupção como modelo social. Caso se pretenda analisar a corrupção a partir da sua expressão apenas jurídica (a ministra da justiça foi a incumbente), tal pode ser um verdadeiro problema. O justicialismo é, sem dúvida, um populismo e, o mais grave de tudo, é que não vai necessariamente atacar a origem do problema. Aliás sobre a corrupção a um nível de crime pouco tenho a dizer. Agravar as penas, inverter o ónus da prova, arrestar bens em processo de investigação ou outras quaisquer formas de justicialismo podem, curiosamente, acabar por ser favoráveis à propagação de um clima de medo que já aí está e que favorece os corruptos em lugares de poder. Ora, isto leva-nos à questão central deste texto: a corrupção é, antes de mais, um modelo social cuja reprodução convém travar.

Este modelo social consiste, em termos gerais, numa transação entre duas partes (uma das partes sendo muitas vezes o Estado entendido como ‘baldio’) que visa ganhos privados em função da captura de valores públicos. Estas transações fazem-se todos os dias, e efectivam-se com apoio jurídico para que estejam defendidas face a eventuais ilegalidades, ainda que o escrutínio seja praticamente inexistente em inúmeros casos. É todo este caldo que está na origem da (re)produção de uma ‘sociedade de clubes’: sejam sociais ou de prestígio; de negócios; profissionais/institucionais ou políticos.

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2. Confiança política e pessoal versus meritocracia e liberdade. Uma sociedade democrática implica um equilíbrio difícil entre confiança política e pessoal, por um lado, e meritocracia e liberdade, por outro. A liderança política de um país e de instituições públicas requer aquele equilíbrio. Mas é por isso mesmo que um imperativo também político é estabelecer regras claras desse equilíbrio. Saber exatamente onde termina a confiança política e pessoal e onde começa o critério da meritocracia e liberdade.

O transpirar dos governos para a administração pública (pelo ‘socialismo esquemático’ que se fez da CRESAP) do critério da confiança política e pessoal como principal critério de gestão institui a lógica de ‘sociedade de clube’ e, mesmo, em alguns casos, de ‘sociedade de casta’ (pois as pessoas eternizam-se por mais de uma década circulando entre diversos cargos de direcção). Ora é essa lógica de ‘casta’ que os leva a uma auto-definição como Estado: quem governa instituições públicas considera-se representante do verdadeiro e único interesse da instituição, actuando, pelo menos por vezes, sob a forma de ‘imperium’. O resultado é a utilização de estratégias normalizadas de controlo, por assédio e medo, impedindo efetivamente liberdades básicas a um nível pessoal e profissional e negando de todo uma igualdade profissional e de carreira dos demais membros da instituição em relação àqueles que estão no poder institucional e que, por vezes (só com um estudo se saberia se muitas vezes), têm menos mérito. A centralidade da Administração em Lisboa, lugares dominados pela lógica do ‘convidado’/‘nomeado’, a difícil ou mesmo impossível mobilidade, enfim o fechamento típico de uma ‘sociedade de clubes’ acaba por confirmar a lógica de casta e institui o marasmo português.

Claro que falar das instituições e das pessoas, do medo, do assédio e da intolerância é para muitos uma conversa de meninos no que diz respeito à corrupção. O problema maior há-de encontrar-se antes na contratação pública e em todas as suas perversidades. Ora, uma e outra relacionam-se: o modelo social da corrupção que alastra nas instituições sustenta-se na intolerância com o objetivo de capturar os recursos em sistema de monopólio, impedindo, assim, qualquer concorrência meritocrática a todos os níveis da instituição…e no seu âmbito de influência. É claro que, por exemplo, a forte concentração das compras da administração pública a empresas da região de Lisboa é uma evidência de um território monopolista e propicia lógicas de clube. É, de facto, assim, que Portugal empobrece.

3. As 1001 ‘casas portuguesas’. Em Portugal há cerca de 300 e tal instituições da Administração direta do Estado mais cerca de 300 e tal institutos públicos ou equiparados e mais 308 Câmaras Municipais… Somado e em números redondos temos pelo menos cerca de 1001 ‘castelos’, ‘capelas’ ou, simplesmente, ‘casas portuguesas’. Explicando: em auto-identificação, por vezes os portugueses chamam ‘casa’ ao local de trabalho, enquanto num sentido crítico se chama ‘capelinhas’ ou mesmo ‘castelos’ às mesmas instituições para caracterizar a captura das mesmas por um indivíduo ou um grupo. Portugal foi uma ‘sociedade de casas’, quer com ‘vínculos’ (solo vinculado a famílias, com grande autonomia face à administração com habitação com torre acastelada por vezes, muitas vezes com capela) quer em que a própria ‘Casa Real’ era uma confusão entre administração da família real e reino. As instituições da Administração Pública acabaram por herdar, pelo menos em parte, este modelo. O que chamamos ‘efeito-casa’. Elas passaram a ser uma segunda ‘casa’ para antigos morgados e mesmo uma primeira ‘casa’ para segundos filhos, gente remediada e sem terra que compensou com formação a falta de ‘pergaminhos’. Ao modelo da ‘sociedade de casas’ e ‘vínculos’ que fazem parte do lastro histórico, acrescente-se, no movimento rural-urbano a partir dos anos 60 do século passado, a hierarquia e, mesmo, a violência, aprendidas em seminários e nas instituições militares e temos o molde sociocultural em que se fez parte das lideranças e dos modelos institucionais da Administração Pública dos últimos 50 anos.

A verdade é que, num país pequeno e fechado, estas mais de 1000 instituições são os lugares da tentação de dominar o poder para (re)produzir processos clubísticos (familiares, sociais, profissionais, institucionais e de negócios). De facto, cada instituição destas, num país pobre, é um potencial centro de emprego para familiares e amigos, um potencial centro de trocas de favores criando uma rede social que possibilita um salto para negócios e, claro, um centro de gestão de carreiras ao serviço dos demais interesses quaisquer que sejam. Saber em cada uma destas instituições qual a equação entre confiança política e pessoal e meritocracia e liberdade que é colocada em acção é um enigma. Só se sabe se um melão é bom depois de o abrir! Sabemos que a Administração Local (Câmaras Municipais, Juntas de Freguesia e Empresas Municipais) era o principal foco de ‘corrupção participada’ entre os anos 2004-2008. Claro que a corrupção participada é a ponta do iceberg pois a mais refinada não é ilegal uma vez que depende de um ‘ciclo de corrupção’ estabelecido: aceder ao poder; criar uma rede de fidelidades; corroer e dominar todos os órgãos de tomada de decisão e, finalmente, instalar a corrupção pelo domínio dos recursos da instituição (lugares de carreira e acesso aos fundos) de forma legal em favor de interesses de um pequeníssimo grupo. É neste ciclo que as duas partes do processo de corrupção se tornam uma só! O executivo da instituição é o Estado e actua livremente. E não há Ministério Público que possa encontrar crime, apenas falhas: a falha é sistémica.

4. Intolerância e tolerância: A serpente que come o seu próprio rabo. O surgir de partidos que fazem da corrupção e do justicialismo (Chega) ou da liberdades civis e livre concorrência (IL) as suas grandes bandeiras, evidencia que  o sistema que criámos está já a deixar demasiada gente de fora dos clubes de prestígio (dos nomes de boas famílias a quem tudo se deve) e dos clubes sociais (que partilham identidades de origem, percursos escolares comuns e que trocaram favores ao longo da vida) e dos clubes institucionais e de emprego (dos que dominam as instituições públicas, as câmaras municipais, etc.). É essa sociedade fechada que está em causa e que deve acabar: uma sociedade ainda em alguns casos herdeira do pré-25 de abril, mas herdeira também de uma educação de aldeia de um país atrasado, de um Estado obsoleto, centralizado e burocrático instigador da dependência e do medo, e também da ‘maldição dos recursos’ (como diz Nuno Palma). A IL e o Chega são os exemplos (para o bem e para o mal) de um fim de ciclo. No entanto, não é certo que a meritocracia, a liberdade e a concorrência sejam mais atrativas do que a vingança que o justicialismo apresenta. A ideia da serpente morder o seu próprio rabo, ou seja os políticos a atacarem os políticos é, infelizmente, mais atrativa e evidencia mais a necessidade de fechar um ciclo e abrir outro. Mas a verdade é que também não é certo que haja força e vontade suficientes para entender a corrupção como um modelo social e cercear a voracidade da confiança política ou pessoal como critério principal de administração do Estado e o controlo da distribuição dos dinheiros em lógica de quase-monopólio ao serviço de interesses rendistas. Ou seja, é a intolerância de um Estado-bolha que acaba vendo-se espelhada na intolerância do justicialismo.