O nonagenário Cónego Jeremias tem duas grandes paixões – a Igreja e o futebol – mas não ao mesmo nível: a religião satisfaz as suas necessidades intelectuais e espirituais, enquanto o desporto é apenas diversão. Fica feliz quando tudo corre de feição a estes seus dois amores mas, infelizmente, esta semana não foi esse o caso.

– Então, Senhor Cónego, porque está assim?! O seu clube perdeu?!

– Antes fosse isso! Viu que o Papa foi ao Canadá, em “peregrinação penitencial”, porque “no Canadá, muitos cristãos, incluindo alguns membros de institutos religiosos, contribuíram para as políticas de assimilação cultural”?!

– Sim, claro! E então?!

– Pois oiça isto: “O historiador Jacques Rouillard, professor emérito na Faculdade de História da Universidade de Montreal”, em 11-1-2022 publicou no portal canadiano dorchesterreview.ca um estudo em que “afirma que ‘nenhum corpo’ de criança foi encontrado em supostas ‘valas comuns’, ‘sepulturas clandestinas’ ou em qualquer outra forma de ‘sepultamento irregular’ na Escola Residencial Indígena Kamloops, que seria o epicentro de uma clamorosa narrativa anticatólica massivamente divulgada em 2021 como um escândalo de proporções planetárias” (Aleteia, 26-7-2022).

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– Assim sendo, como se explica que, em 2015, a Comissão de Verdade e Reconciliação do Canadá tenha dito que, entre 1890 e 1996, mais de 3 mil crianças morreram por doenças, fome e frio e, em 2021, tenham sido descobertas centenas de sepulturas anónimas junto das antigas escolas para a reeducação de crianças indígenas?

– Respondo-lhe com as palavras do referido historiador canadiano: “Onde estão os alegados ‘restos mortais’ das ‘centenas de crianças indígenas’ que teriam sido ‘sepultadas de modo anónimo em escolas católicas do Canadá’?”. Não existem!

“O historiador fez questão de desmascarar também [a acusação de] que, antes de serem sepultadas clandestinamente como indigentes, ou quase como ‘lixo’, as supostas ‘centenas de crianças’ ainda teriam sido nada menos que assassinadas sob responsabilidade da Igreja. Rouillard é contundente: não foram achados nem sequer indícios de que alguma delas tenha sido morta propositadamente.”

“De acordo com o levantamento apresentado por Rouillard, 51 crianças morreram naquele internato ao longo dos 49 anos transcorridos entre 1915 e 1964”, o que é uma taxa de mortalidade normal para a época. “No caso de 35 delas, foram encontrados documentos que comprovam que a causa da morte, para a grande maioria, foram doenças, e, em alguns casos, acidentes. Nenhuma das 51 crianças falecidas foi assassinada.”

Ainda bem, mas a História não são só luzes

– Pois não e com certeza que há muitas coisas de que a Igreja tem que pedir perdão, mas é lamentável que, em vez de se divulgar a verdade histórica, se inventem mitos. Por exemplo, ninguém falou dos oito mártires que, no início do século XVII, deram a vida pelos indígenas do Québec e Montreal! Nem sequer foi mencionada a índia canadiana Kateri Tekakwitha, da tribo Mohawk, que é a primeira santa nativa do Canadá!

É sempre bom recordar esses exemplos mas, como sabe, também houve excessos na colonização americana, por exemplo em relação aos maias, incas e aztecas.

– Quem conhece a História sabe muito bem que essas tribos ameríndias faziam sacrifícios humanos: chegavam a arrancar aos jovens, ainda em vida, o coração! São estes costumes sanguinários que queria que se respeitassem?!

Não, claro, mas talvez na América do Norte não fosse bem assim… Além disso, é preciso ter em conta que estavam a defender a sua própria terra e cultura!

– Claro que tinham direito à sua independência e identidade cultural, como frisou o Papa Francisco, mas convém não esquecer que estavam continuamente em guerra com as outras tribos e, naquele tempo, ser vencido significava a morte, ou a escravatura. Por isso, também os indígenas deviam pedir desculpa pelos genocídios que fizeram!

Mas não foi a esses índios que o Papa foi pedir perdão, mas aos actuais.

– Pois, pois, chame-lhes índios! Essas pessoas, certamente respeitáveis, com plumas na cabeça, relógio no pulso, óculos escuros de marca e iphone na algibeira, são tão índios como eu sou celta, suevo e visigodo! Vítimas dos primeiros missionários já não há, mas há por aí quem se sirva dessa lenda para denegrir a Igreja e enganar os incautos!

Talvez, Senhor Cónego, mas os antepassados deles sofreram muito …

– Decerto, mas se vamos entrar num processo de retaliações históricas, isto nunca mais acaba! Até porque não há povos inocentes: os primitivos canadianos cometeram não poucas barbaridades. Se quer saber a verdade, em 1642, as missões católicas foram atacadas pelos índios que viviam a sul dos lagos de São Lourenço e Ontário. Santo Isaac Jogues, depois de treze meses de cativeiro, foi barbaramente mutilado e, por fim, assassinado, juntamente com outro sacerdote jesuíta, o P. João Lalande. Mais tarde, arrasaram a missão de São José, martirizando o P. António Daniel. Seguidamente, causaram a morte de mais dois sacerdotes: João de Brébeuf e Daniel Lalement. O presbítero Carlos Garnier também foi martirizado, quando a missão de São João Baptista foi destruída pelos índios canadianos, que igualmente assassinaram o P. Natal Chabanel. Se queremos fazer justiça e acertar contas com o passado, então as famílias destes mártires deveriam ser indemnizadas pelos actuais representantes dos indígenas!

Mas a Igreja católica deve dar exemplo de perdão e de reconciliação …

– Sem dúvida, como fez em relação a Galileu e às vítimas da pedofilia, mas sem pactuar com a falsificação da História que nos querem impingir. Os anglo-saxões querem culpabilizar os católicos pela colonização da América Central e do Sul, para esconderem que, na evangelização do Norte, protagonizada por protestantes, as populações locais foram pura e simplesmente dizimadas! Pelo contrário, a colonização do centro e sul foi feita sobretudo por católicos – portugueses e espanhóis – e as populações locais foram preservadas. Por isso, enquanto os norte-americanos são de origem europeia, africana ou asiática, mas não índia nem mestiça, os americanos do centro e do sul são, graças à miscigenação, uma mistura de raças.

De todos os modos, Senhor Cónego, foi bom que o Papa fosse ao Canadá.

– Claro que foi e com certeza que houve excessos, que o Papa fez bem em lamentar. É evidente que a evangelização deve respeitar o que é legítimo nas culturas locais, sem esquecer que o objectivo é a salvação das almas. No século XIII, foi muito apreciada uma pregação de São Bernardo numa catedral repleta de fiéis, mas ele ficou tristíssimo, porque não pretendia aplausos, mas conversões!

Eram outros tempos!

– Pois eram: tempos de fé, de evangelização, de santos e de mártires! Mártires também agora os há e, se quer que lhe diga, é onde as ovelhas são perseguidas por causa da fé – Nigéria, China, Sri Lanka, Paquistão, etc. – que é mais necessária a presença dos pastores. Desde sempre a Igreja pregou o cuidado pela criação na perspectiva do Evangelho, como faz a Laudato sí, mas agora alguns missionários substituíram a Palavra de Deus pela ecologia, as alterações climáticas e a biodiversidade!

Fez-se tarde e, como o Cónego Jeremias não perde a reza do terço, directamente da Capelinha das Aparições, em Fátima, tive de o deixar. De regresso a casa, rezei por ele e pelo Papa. Com algum atrevimento – que espero que Deus me perdoe! – pedi uma próxima vitória para o clube deste – valha a redundância! – ancião presbítero: afinal, nem só do espírito vive o homem!