Dos Estados Unidos e do Reino Unido chegam-nos momentos de engrandecimento e dignidade democrática com o discurso do Estado da União, de Joe Biden, e a recepção a Zelensky, e o histórico discurso deste, em Westminster Hall, respectivamente – não me deterei em qualquer um dos dois ainda que, por razões distintas, ambos tenham tido momentos notáveis só permitidos pela consolidação dos valores das democracias dos dois países.
Enquanto isto, do parlamento português chega-nos o embaraço: a tecnologia serve a Gomes Cravinho o clássico «o cão comeu-me o trabalho de casa, peço desculpa». Talvez não explique tudo, mas explica muito.
Naqueles países – e até vou usar uma palavra de que desgosto – há resiliência democrática. Aquilo que permite perseverar num ideal de liberdade a despeito de cisões sociais graves, sejam estas vertidas em invasão ao Capitólio, e menoridades do tipo Marjorie Taylor Greene e afins, do lado americano, ou de Brexit do lado inglês. Aqui, na endémica pobreza que habitamos agravada pelas crises sanitária e inflacionária e pela degradação dos pilares do Estado como ele é concebido pela social democracia, da quebra do SNS à escola pública passando pelos vícios da administração pública, não há resiliência democrática, há perda democrática: o Partido Socialista desistiu dos portugueses em benefício da manutenção do poder e deixa-lhes o Chega por herança. Que não haja dúvidas: o Chega é a herança socialista.
Se a esperança em Portugal se perde entre as sinecuras, ganha-se num ideal maior de liberdade e vitória, nosso também: a lição ucraniana – e num período particularmente difícil para a Ucrânia, com a queda de Bakhmut.
A Rússia avança caminhando sobre os corpos dos seus próprios homens. Vidas como se nada fossem, buscadas nas prisões ou na pobreza, num número sempre crescente para dar de comer à morte. A Ordem Número 227, de 1942, «nem um passo atrás», regressou oficiosamente. Criminosos e miseráveis são integrados nos batalhões. Mal alimentados, mal equipados, são obrigados a avançar sem recuar ou serão mortos pela sua própria retaguarda, seja ela o Grupo Wagner ou o exército. Putin como Estaline. Ao povo ucraniano a Rússia leva o horror que já ninguém pode desmentir, desde as câmaras de tortura à deportação de crianças, desaparecidas até quando? Um país devastado.
Leon Aron, no Washington Post, neste artigo que muito recomendo, fala de uma nova doutrina de guerra do Kremlin, nem mais nem menos do que a velha doutrina usada pela União Soviética de Estaline, na Segunda Grande Guerra, contra a Alemanha de Hitler – não refere, no entanto, que nessa altura a União Soviética estava armada também pelos Estados Unidos. Esta nova velha doutrina acompanha a «re-estalinização» da Rússia, desde a propaganda à repressão e militarização em perfeita simetria com a estalinização do próprio Putin.
Os ucranianos estão unidos num propósito comum onde se reforça o ideal de democracia e liberdade que o seu líder, Zelensky, substancia. Pagam o preço em vidas.
A Europa, mais ou menos unida, fracciona-se diante das suas próprias dúvidas e o receio da escalada, o medo nuclear. Todos o sentimos. A longa indecisão para entregar os Leopard transitará para a longa indecisão para entregar os F-16 e os Typhons. A demora não serve os interesses ucranianos, serve os interesses russos.
A verdade é que a escalada já aconteceu: depois de molhar o pé na Crimeia, Putin olhou em redor e nada. Quase nada. Escalou. Não fora Zelensky, e não sei se tudo não permaneceria nas mesmas circunstâncias. Quase nada.
Convinha às democracias ocidentais uma união inequívoca, decisões atempadas e a consciência de que o passado é o melhor preditor do futuro. Por isso também eu repito: Putin não vai parar até que seja parado — asas para a liberdade.
A autora escreve segundo a antiga ortografia