A notícia soube-se nos últimos dias do ano de 2019, mas não só não perdeu atualidade, como continua a fazer um eco terrível. Ensurdecedor.
No dia 28 de Dezembro vários jornais publicaram o seguinte (cito a partir do Observador): “um juiz da Horta, nos Açores, absolveu um homem acusado de ter pontapeado e asfixiado a sua namorada, apesar de na própria sentença dar todas as agressões como provadas – mas considerar que o homem não teve intenção de agredir a mulher”.
Parece impossível, mas é verdade. E a decisão de absolver é de tal maneira chocante e perversa que o Tribunal da Relação de Lisboa obrigou a repetir o julgamento. É o mínimo que se pode fazer para repôr a verdade dos factos (provados) e para tentar reparar, também minimamente, a brutalidade de tudo o que aconteceu à pobre mulher que teve o azar de se cruzar com dois homens pouco recomendáveis. Um porque diz que ama, mas agride; outro porque reconhece a agressão, mas decide dar a absolvição.
Acontece que, ao reiniciar este mesmo processo, a vítima vai certamente voltar a sentir-se agredida. Primeiro, por ter que reavivar as memórias dos factos, depois por ser humanamente impossível que não se sinta injustiçada e maltratada por um juiz que não só não lhe faz justiça, como declara que o criminoso é inocente. E lhe devolve toda a liberdade para poder repetir as suas proezas.
Andando atrás no tempo e mesmo sem conhecermos os contornos daquilo que esta mulher viveu, é impossível ficarmos indiferentes aos acontecimentos. Primeiro, a própria agressão, pois ninguém acredita que alguém tente asfixiar outra pessoa sem querer.
– Lanço as minhas mãos ao teu pescoço até deixares de respirar e faço tudo para te asfixiar, mas acredita que é sem intenção absolutamente nenhuma, meu amor.
Credível, não é?! E clarinho como água. Se fosse possível fazer fé no douto juiz, passaria a existir uma nova e sinistra categoria de atos, bem como uma nova e perversa conjugação dos verbos asfixiar e pontapear.
A partir do momento em que tanto poderia ser considerado intencional como não intencional, tudo passaria a depender do ponto de vista e da sensibilidade de quem está envolvido. Desde logo, de quem sofre a violência de se sentir sufocar. Até aqui, e tendo forças para resistir, a vítima teria toda a legitimidade para se sentir vítima e para considerar tal ato inequivocamente intencional. A partir da sentença do juiz e mesmo que a justiça à frente seja restaurada, ficámos a saber que toda e qualquer vítima pode até sobreviver às agressões, mas depois esbarrar numa barra difícil de transpor. Basta haver pessoas com os mesmos critérios do juiz da Horta.
Antes de avançar para o capítulo ‘pontapés sem intenção’, pergunto-me se este homem terá mulher e filhas, sobrinhas ou amigas? Talvez não, mas teve certamente a experiência de ser filho de uma mulher. E perante esta certeza a perplexidade agrava-se ainda mais, pois não é possível que este ou outro homem nascido, possa considerar a tentativa de asfixia de um homem à sua namorada não intencional. Mas adiante, porque ainda faltam os pontapés e, se não estivermos atentos, estes também correm o risco de serem classificados ‘não intencionais’.
Custa fazer ironia sobre temas tão dolorosos, mas foi o juiz da Horta que ditou a sentença e iniciou o desenho da sua própria caricatura.
Pontapés sempre foram e serão pontapés e os únicos universalmente reconhecidos e validados como bons são os que são dados em certos ringues de combate, mais os que acertam na bola. Ponto. Os melhores são, claro, os que servem para marcar golos na baliza adversária. De resto não existem pontapés que não sejam agressivos e intencionais.
Puxar o pé e a perna atrás para desferir um pontapé forte e certeiro exige força, raiva e um cúmulo de sentimentos negativos. Se o contexto não é desportivo nem de competição, o pontapé é sempre um ato violento, exercido para fazer doer. Em certos contextos para aniquilar e destruir. Ninguém gosta de levar pontapés (embora muitos gostem de os dar) e até o pontapé de uma criança é um ato censurado e castigado. Admoestar ou punir alguém por ter dado um pontapé é comum e socialmente bem aceite e, assim sendo, fica ainda mais clara a bizarria de absolver um homem que deu pontapés à sua namorada, alegando que foram sem intenção.
Mesmo sabendo que o Tribunal da Relação de Lisboa está atento e não deixa passar esta absolvição impune, a dor e os sofrimentos da mulher agredida não podem deixar de nos doer. E homens como estes, que em vez de servirem a justiça, favorecem as injustiças, deviam ser julgados pelos critérios que aplicam e avaliados pelos danos que geram. Já agora, se o senhor juiz da Horta se sentir agredido pelas minhas palavras, não se esqueça de se lembrar que é sem intenção. A minha intencionalidade é outra: que esta e outras mulheres sintam que há justiça.