Por muito que nos custe, e não pareça, o aumento das taxas de juro é a terapia menos dolorosa para reduzir a inflação. A outra alternativa, muito mais agressiva e que iria agravar as desigualdades, seria actuar através do Orçamento do Estado, com a redução da despesa ou o aumento dos impostos. Certamente que todos percebem que esta última medicação provocaria maiores danos na economia e na sociedade. E os políticos deviam até agradecer terem dado aos bancos centrais a independência que têm.
Fixar administrativamente preços era a receita certa para que os produtos desaparecessem das prateleiras, florescendo um mercado paralelo que tornaria ainda mais difícil o acesso a quem tem rendimentos mais baixos. Além disso, os preços voltariam a mostrar a sua fúria quando essa decisão administrativa fosse anulada.
Embrulharmo-nos em debates sobre a origem da inflação é outro erro. Foi aliás o pecado original do BCE que se deixou armadilhar nessa controvérsia – que também existiu e existe em Portugal. E atrasou-se no processo de subida das taxas de juro. De tal maneira que nunca saberemos se não estaremos a pagar, com taxas mais altas, o facto de não se ter actuado de imediato, como aconteceu nos Estados Unidos.
O argumento é que a origem da inflação está na oferta, nos preços da energia por causa da guerra ou na escassez de produtos porque os canais de distribuição ainda não tinham recuperado da pandemia. A falha deste argumento é esquecer-se que a falta de oferta não se resolve no curto prazo. O efeito final é a subida de preços, por excesso de procura, que rapidamente se transforma em inflação.
O aumento das margens de lucro das empresas em 2022 – dois terços da inflação é explicada por isso, segundo o BCE – é simplesmente o reflexo desse excesso de procura. As empresas tiveram o poder de aumentar os preços para além dos custos, porque tinham procura. Os consumidores estavam ali, disponíveis para continuarem a consumir mesmo com tudo mais caro. A economia estava forte, os juros baixos e existiam poupanças acumuladas durante a pandemia e muita vontade de ir às compras, no que ficou conhecido como o “consumo de vingança”.
Influenciado pelas designadas pombas, ou pelos governos que têm nos seus eleitorados muitas famílias com crédito à habitação a taxa variável, como é o caso de Portugal mas também de Espanha, Itália, Grécia e Áustria, o BCE atrasou-se no aumento dos juros e na retirada das injecções de liquidez. A Reserva Federal fez o seu primeiro aumento de juros em Março de 22 quando por aqui se dizia que a inflação era do lado da oferta e temporária. O BCE só fez a sua primeira subida quatro meses depois, em Julho de 22, quando estava já a assistir à desvalorização acentuada do euro, alimentando a inflação também por essa via.
Esta inflação, na prática, significa que estamos todos mais pobres. Mas como ninguém o aceita, cada um dos protagonistas da economia tenta atirar para cima do outro essa perda de poder de compra. Em 2022 as empresas tiveram poder para isso. Neste momento ainda não sabemos bem como está esse poder, mas há sinais de que a mudança foi limitada porque os preços ainda não cederam, de forma que nos dê confiança de a inflação estar controlada.
As empresas, as mais endividadas, já estão a sentir a pressão da subida dos juros, continuam a enfrentar, pelo menos algumas, falta de mão-de-obra e a pressão para aumentos salariais. Terão ainda poder para refletir agora esse aumento dos custos e acrescentar ainda mais margem, como em 22? Aparentemente não têm tanto poder sobre os consumidores como em 22, o consumo está a abrandar, mas pode não ser suficiente.
Estamos numa fase do jogo “atira o custo da inflação para o outro” que ainda é perigosa. Foi esse o retrato que se percebeu das mensagens de Christine Lagarde, foi esse o receio que ficou subjacente ao que disse. E por isso, percebe-se que o BCE vá aumentar de novo os juros em Julho e não se queira comprometer com qualquer pausa depois do Verão.
O argumento dos que criticam este novo discurso de Christine Lagarde é agora que devíamos esperar para confirmar os efeitos, porque a subida foi muito rápida e a transmissão, à economia, destes quatro pontos percentuais de subida num ano ainda não se fez sentir. É o argumento de Portugal que temos ouvido do governador Mário Centeno e mais recentemente da vice-governadora Clara Raposo. A dose pode estar já a ser excessiva, considera quem defende esta tese, e o resultado pode ser lançar a Zona Euro numa recessão desnecessária.
É um bom argumento, até levando em conta o que disse Christine Lagarde. Se em Portugal a esmagadora maioria das famílias têm empréstimos a taxa variável (88%) e até ao fim do Verão podem já estar a pagar o dobro da prestação de há um ano, no conjunto da Zona Euro não é assim. Cerca de 40% dos crédito à habitação são a taxa fixa, o que significa que as famílias levam mais tempo a sentir o efeito da subida dos juros. Além disso, esta subida tem efeitos assimétricos, mais rápidos nos países que usam muito a taxa variável como é o caso de Portugal.
O problema é que o BCE tem andado sempre atrás do prejuízo. Não aumentou quando devia as taxas de juro e agora até pode estar a atuar por excesso. Mas dados os efeitos da inflação que, é preciso não esquecer, afetam de forma mais violenta as famílias de rendimentos mais baixos, vale mais atuar por excesso do que por defeito.
O que os países não podem fazer é, com a política orçamental ou outra, adotarem medidas que anulem, mesmo que parcialmente, aquilo que o BCE está a fazer. Os apelos quer do FMI como o BCE têm sido no sentido de dizer aos governos para concentrarem os seus apoios nas famílias com rendimentos mais baixos. E, de alguma forma, este ano, tem sido isso que o Governo fez.
Mas o BCE terá de avisar também os bancos centrais nacionais que têm algumas responsabilidades no domínio da política macroprudencial. Na entrevista ao Negócios e à Antena 1, a vice-governadora do Banco de Portugal, Clara Raposo, admite que se possa alterar a regra de cálculo da taxa de esforço, para obter o crédito à habitação, reduzindo designadamente os três pontos percentuais, que são somados à taxa acordada, para avaliar se o peso das prestações de todos os empréstimos no rendimento líquido fica abaixo dos 50%.
Claro que com esta regra e com a Euribor na ordem dos 4%, a taxa de esforço acaba por ser calculada com um juro de 8% (com spread de um ponto percentual). Só um processo altamente inflacionista podia levar as taxas a esse patamar e, por isso, percebe-se a intenção do Banco de Portugal. Com esta regra, o crédito à habitação fica bastante limitado. Embora possa não ser com essa dimensão, é esse mesmo o objetivo do BCE ao aumentar as taxas: abrandar ou mesmo reduzir a concessão de crédito. Ao adoptar esta medida, Mário Centeno está a abrir a torneira do crédito em Lisboa, quando a decide fechar, concordando ou não, em Frankfurt.
Percebe-se a preocupação. Portugal tem um problema de falta de habitação e se o crédito para comprar casa estiver apertado, agrava-se a situação de falta de casas. Além disso, pode criar-se um problema no sector da construção. Mas a pergunta é: estes problemas afetam a estabilidade do sistema financeiro? Dificilmente. Sendo assim, o banco central está a preocupar-se com o que não devia e a entrar em contradição com o que é o seu papel enquanto membro do Sistema Europeu de Bancos Centrais.
É frequente dizer-se que os bancos centrais não têm legitimidade democrática. Nada mais errado. Têm a legitimidade democrática que lhes foi dada quando os governos eleitos lhes delegaram o poder independente de gerir a política monetária, simplificadamente, de decidir sobre as taxas de juro. Porque os governos usavam as taxas de juro para conquistar o poder, para ganhar eleições.
A presidente do BCE está a ter, finalmente, o discurso que se pede a um banqueiro central que tem um mandato muito explicito de estabilidade de preços, ganho com o que a história económica nos ensinou. O Banco de Portugal não pode cair na tentação de querer assumir funções que pertencem ao Governo e de querer ser popular em tempos de inflação. Quem não quer ser banqueiro central não tem de lhe vestir a pele. Ninguém é obrigado.