A crise, às vezes, gera gastos inesperados. O Tribunal Constitucional, por exemplo, gastou “muito dinheiro a comprar livros de economia por causa dos pedidos de fiscalização relacionados com a crise”. Tudo isto para os juízes se actualizarem. A informação vem numa reportagem do Diário Económico e não teria importância nenhuma se não fosse reveladora daquilo que vai na cabeça desses mesmos juízes.
No momento em que escrevo aguarda-se para qualquer momento o anúncio da decisão sobre os cortes salariais na Função Pública. A expectativa, diga-se em abono da verdade, não é grande: quase ninguém acredita que os homens do Palácio Ratton possam aceitar a diminuição dos salários dos funcionários públicos prevista no Orçamento em vigor. Já quase só há dúvidas sobre os detalhes da decisão e sobre a sua fundamentação – afinal, ao longo dos últimos anos, o Tribunal não tem deixado de nos surpreender com as suas elaborações jurídicas.
O ponto curioso, e significativo, sobre esta nova atenção dos juízes pela literatura económica é que ela revela muita sobre a forma como eles se vêm a si próprios e às funções que desempenham. Na verdade aquilo que esperamos dos guardiães da Constituição é que eles saibam ler e interpretar a Constituição, não que sejam especialistas em economia. Mais: sabemos que não são especialistas em economia e, por isso, devíamos esperar que não tentassem seguir por caminhos que conhecem mal. No fundo, que não tentassem analisar a bondade das medidas económicas, antes se ativessem às questões jurídicas e constitucionais.
Não é isso que os juízes do Tribunal Constitucional pensam. Quem se deu ao trabalho de ler os diferentes acórdãos proferidos desde que as medidas de austeridade têm começado a cair, por sistema, no regaço do TC, notou que este se ocupou vezes demasiadas de temas que são pouco jurídicos, antes têm a ver com saber se as medidas são ou não as melhores para alcançar os objectivos pretendidos.
Ora a questão que se coloca, sempre que os juízes enveredam por este caminho, é a de saber se compete a esse grupo específico de 13 cidadãos decidirem por maioria simples questões que são eminentemente políticas. Ou seja, se o facto de esses 13 cidadãos se sentarem nas cadeiras dos juízes constitucionais lhes dá poder suficiente para, por exemplo, como sucedeu no acórdão sobre a reforma do sistema de pensões, decidirem contra a maioria existente na casa da democracia, o Parlamento, não por falhas jurídicas nesse documento, mas por entenderem que a reforma não era tão abrangente como deveria ser.
Desde que se iniciou, em Julho de 2012, a saga dos chumbos do Tribunal que tenho defendido a mesma posição: os membros do TC têm sistematicamente optado por juízos que são, na sua essência, juízos políticos, escolhendo depois alguns preceitos constitucionais vagos e genéricos para justificarem as suas decisões. A reportagem do Diário Económico veio acrescentar dados concretos a esta forma de funcionamento.
É quase ingénua a forma como aí se conta a forma como avaliam, por exemplo, se há ou não violação do princípio da confiança. O processo decorre em dois passos: primeiro, os juízes tratam de responder a três questões – a que chamam “testes” – sobre se existiam ou não expectativas dos cidadãos alimentadas pelos poderes públicos; depois, existindo essas expectativas, se há ou não um interesse público que se sobreponha. Ora, como se escreve na reportagem, “é aqui que o trabalho dos juízes constitucionais se torna mais difícil de compreender”. Na verdade, “como é que se avalia o interesse público do ponto de vista estritamente jurídico? Qual é o peso da avaliação económica nesta balança?”
Como resulta óbvio, não há uma resposta constitucional a estas questões. Há apenas o juízo dos membros do tribunal. E, sobre esses juízos, estamos, de certa forma, conversados. Basta recordar como, recentemente, os juízes seleccionaram, por cooptação, um novo membro para o TC e essa escolha recaiu em João Caupers, um professor de Direito que partilhou abundantemente, no site da Universidade Nova, o seu pensamento. Num dos textos que aí podemos encontrar, significativamente intitulado “Estamos lixados, sim! Mas não somos lixo!”, o agora circunspecto juiz escrevia, por exemplo, que os argumentos relativos aos cortes salariais na administração pública eram “patéticos”, acusando o Governo de os fazer “porque nos considera gasto e não recurso, porque não temos para onde ir, porque, se morrermos, tanto melhor”.
Não estou a ver que livro de economia possa iluminar o dr. Caupers, agora ilustre juiz por escolha directa dos seus pares. Nem como explicar aos seus companheiros do TC que o papel de um tribunal não é entrar em áreas claramente subjectivas, como as de definição de “interesse público”, substituindo-se aos órgãos eleitos e que são democraticamente julgados pelos eleitores quando, porventura, ajuizam de forma errada o que é “interesse público” – algo que, de resto, acontece amiúde.
Mais: existe entre os juízes do TC a convicção, vertida em diferentes acórdãos, de que a austeridade tem prejudicado especialmente os funcionários públicos, e que os cortes nos seus salários são injustos e desproporcionados. Estou certo que vão voltar a afirmá-lo no acórdão que está para sair. Por isso talvez lhes fizesse bem acrescentarem à sua biblioteca o relatório do FMI relativo à 11º avaliação, onde vem um gráfico muito curioso e elucidativo. É este:
O que ele nos mostra é que, comparando o que se passou desde 2008 no sector público e no sector privado no que toca a custos salariais, se chega à conclusão interessante de que foi no sector privado que os custos salariais mais caíram. No sector público, se compararmos o momento inicial e o momento final, verificamos que estamos praticamente onde estávamos: os custos unitários do trabalho começaram por subir em 2009 (ano de eleições legislativas e de défice público superiuor a 10% do PIB), depois cairam para valores próximos dos de 2008 por efeito de um primeiro corte salarial (ainda com Sócrates), a seguir encontramos um fosso provocado pelo corte dos dois subsídios em 2012, regressando depois os custos unitários ao seu valor de 2008 por efeito das desicões do Tribunal Constitucional. Já quando olhamos para o sector privado verificamos que esses custos unitários têm vindo a cair, situando-se hoje cerca de 7% abaixo do valor que tinham no primeiro trimestre de 2009.
Ou seja, estes números contrariam a ideia de que têm sido os funcionários públicos os mais sacrificados. Longe disso.
Seja lá como for, este exemplo serve apenas para reforçar o meu ponto inicial, o de que não compete aos juízes do Palácio Raton estudarem economia para saberem se este ou aquele governo está a servir o interesse público. E que, no mínimo, se esperava deles mais contenção e equilíbrio quando invocam os princípios, necessariamente vagos e com componentes políticas, da igualdade, da proporcionalidade ou da confiança.
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